sábado, 15 de agosto de 2020

Por um adeus onde tudo comece

  Partiu calmamente. Sem agitação nem sustos; sem tempestades ou piso balouçante. Foi embora sem sacudir, sem fraturas, sem um rastro de abandono atrás de si. Nenhum apartamento vazio, com marcas de móveis na parede. Nenhuma mãe, chorando o filho muito vivo ou um quase morto.
  Foi embora sem alardes, sem acordar o cão deitado no corredor, simplesmente passou por cima dele, sem tropeços nem tempo para trégua. Não teve bilhete com letra tremida e tinta um pouco desbotada, não teve carta demorada dentro de um envelope em branco. Foi sem bater a porta, sem nem fazer as cortinas voarem. Não fez vento, sol nem choveu na despedida. Saiu fresca pela porta com um vestido solto e tênis de lona.

  Não teve um aceno final, explicação detalhada ou, ao menos, uma tentativa de explicar o que  não pode ser. Foi ligeira e lenta num mesmo passo; se isso é possível.
  Não duvidou, não consultou, não teve olhar para trás, não foi como a mulher de Lot, sem a curiosidade para assistir o que deixava. Foi serena e muito dura.  E me deixou no porto, nesse barco tão cheio de tudo que ela levou consigo. Eu não senti mais nada.

  Foi sem rebelião e, talvez dissessem sem luta, o que eu não acho. Porque há batalhas silenciosas e que só sangram por dentro. Partiu sem disputas, sem acusações, sem culpa, sem rancor, sem razões de ir, mas também sem nenhuma para ficar. Foi porque era preciso ou porque acordou num dia e não achava que ali era o lugar.
  Partiu tão estranhamente alegre, que não achavam que ia embora, parecia sair para um passeio, com lugar reservado na volta. Depois de quinze minutos não é mais vista, meia hora e ninguém sabe de nada, três horas e ainda não voltou, trinta anos passados e ainda há quem a espere; mais por costume do que esperança; nem seu nome sabem mais.
  Saiu sem contar os planos, se os tinha também não sabemos, sem malas nem orientações para aguar plantas, alimentar peixes, abrir a porta para o gato, pagar o aluguel, desmarcar consulta médica. Não disse nada.

  Saiu sem testemunhas, provas, denúncias, acareação. Como trazê-la para explicar o que passou se ninguém mais a encontra?
  Não teve corpo para velar. Sem cadáver e um par de mãos que não soubessem o que fazer com uma alça de caixão. Não teve encomenda de flores, aviso aos parentes e amigos, obituário também não teve. Nenhum desconcerto como o de um estranho chorar compulsivamente sobre o finado, os cumprimentos estranhos de mãos moles e olhares de empatia que nunca enterraram um amor. Nenhum corpo frio, vestido com roupa de gala, sem sapatos e muito blush nas bochechas duras.
  Não teve quem chorasse, porque partiu sem cenas, sem cooptar simpatizantes ou lamentos. Foi sem política, sabe? Sem propaganda, sem textos, sem nenhum  tipo de anúncio. Talvez nem soubesse, quando saiu, que não voltava.
 
  Soltou-se pluma, poeira cósmica, sem  nada arrancar ou ferir. Partiu sem deixar um espaço vazio que lembrasse o seu corpo, as suas ideias, os seus sonhos e afetos. Limpou tudo antes de não mais voltar. Ninguém sabe do perfume nem das formas do seu corpo, todos esqueceram; embora ainda se lembrem que era ela quem descia com o lixo e entregava as cestas de natal aos porteiros. Nem tudo se apaga.
   Lançou-se à partida e não pediu desculpas ou concedeu perdão. Foi sem dívidas ou créditos. Não tinha patrão e empregados também não tinha. A casa era temporária; sempre é. A partida talvez tenha sido a volta para algum lugar ou um outro começo.
  Foi porque era hora; talvez o último ônibus do dia, o último voo, a chance final ou a vontade primeira de um dia.

  E depois que foi, carregando os dias divididos, os discursos falidos e os discos ouvidos; não me fez chorar de saudade ou de arrependimento por não tê-la abraçado à porta. Só levou o que era dela e o que nunca poderia abandonar.
  Partiu sem deixar dor, sem despertar o cão, sem rasgar, sem escrever, sem romper, sem deixar quebrar, sem pedir favores aos vizinhos.Não disse que não voltava, mas também não prometeu que não doeria. Foi sem conferir o que deixava e sem cobrar, mas também não se deixou ser vista.

 Saiu antes que eu preparasse o café e ao meio-dia eu já não sentia mais nada. Não olhei mais para o relógio, não conferi cada barulho perto da porta. Eu e o cão dormimos tranquilos.
  Foi calmo como a Elis, cantando uma casa no campo; entrega absoluta c'est mon désire: um descanso e uma liberdade. Um adeus que permita que tudo comece de novo.



2 comentários:

Bel disse...

"Não teve corpo para velar." Já imagino o Yuri Marçal comentando seus textos! Judiou!

Amanda Machado disse...

Fala, Clemê!
Eu e a Marrom, né? Hahaha