sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Para lembrar de não ser só

   Ninguém de nós dois está especialmente em perigo esta noite. Eu e você estamos salvos, ao menos hoje. Não há uma guerra do outro lado do nosso muro que possamos ouvir, nem tiros, nem vozes desconcertantes, nenhum ex-marido grita no portão e ameaça subir, não há ligações ou cartas anônimas; os detetives nós não conhecemos, as estratégias bélicas não são nossas. Os motores não esquentam na garagem, os carros permanecem desligados, nem sirenes nem luzes de emergência. Ninguém precisa partir agora. Sem rotas de fuga.
  Os bombeiros não serão chamados, as ambulâncias não virão até nós dois. Hoje não há mortos ou feridos. É latência de vida, em chama de amor infinito ainda que dure somente esta noite.

  Nem o cachorro vizinho late agora, mas uivou a tarde inteira, reassumindo sua identidade às vezes tão perecível.
  Hoje duramos tanto, nossas bodas completam um século; uivaria em comemoração, se isso não interrompesse nossa paz sonora. Agora é quietude e segurança. Não tem grito, não tem latidos, não tem voz de socorro, mas também não tem o silêncio de morte. É descanso em bote, flutuando na calmaria. Corpos entregues em um colchão de nuvens.

 Porque nós não corremos - nem queremos - o perigo essa noite. É confortável e quente assumirmos nosso lugar na cama, acostumados ao mesmo cobertor. Dividimos o sono bom, embora cada um tenha os seus próprios sonhos, descansados na tranquilidade do desejo realizável.
  Hoje, a noite é a da boa política, se discordamos, ninguém paga com a vida. Terminamos o chá, escovamos os dentes, talvez, um pouco contrariados e fazemos as pazes antes de apagarmos a luz. Nenhum imposto, partido, conchavo, milícia foi criada no intervalo entre os rostos virados na pia do banheiro e as cabeças esparramadas na fronha. Tudo é menor que o desejo de não ser mais só, hoje.

  Sua mãe e a minha, sua mão na minha. Suas sobrinhas e a minha. Sua expectativa e a minha. Nosso dois quartos, cozinha, banheiro, sala e varanda. Sua história e a minha. Seus remédios no seu criado-mudo e a minhas lentes no meu.
  Sua infância na roça e a minha na periferia. Suas fotos no cavalo e a as minhas no carrinho de rolimã. Seu silêncio e a minha fala desenfreada. Seus olhos no futuro e os meus em cada agora. Sua escova de dentes e a pasta sempre aberta, minha escova de cabelo e os tufos que eu não tiro dela.
  Nossas escolhas, nossas insistências, nossas ressacas. Nossos amigos, nossas perdas, nossos brindes, nossos anos novos que não sabíamos que seriam tantos.

  As cadeiras chegam na terça-feira, enquanto isso temos a cama e as almofadas; nenhum sinal de cansaço até lá. Não tem gás, mas ninguém ainda quer cozinhar. Não tem um cão nosso; nem terá. Mas temos as plantas e teremos mais.
   Temos internet, sossego e a mágica de deixarmos lá fora o que ainda não sabemos acomodar aqui. Tudo novo. Tudo antigo sonho nosso. As caixas de papelão são esvaziadas lentamente, chegaram em dezenas e partirão uma de cada vez, sem pressa. Começamos agora e temos a vida inteira para escolhermos os lugares de cada coisa.
  Lavamos os lençóis e as toalhas novas, você coloca para secar e eu vou para o trabalho. Trago um bolo e pães na volta, o café pode ser o da máquina, por enquanto. 

  Meu primeiro banho é frio, erramos a voltagem do chuveiro. Você pode estrear o banho quente, eu ficarei na cama até mais tarde, depois que você trocar o chuveiro, porque amanhã é sábado. Quantos invernos depois e eu ainda me lembrarei desse banho?
  Nenhuma dúvida, nenhum outro olhar que não seja esse no qual eu me reconheça, nenhuma dívida que não possamos pagar. Essa noite a cidade não existe sem a nossa felicidade. Não tem trânsito, as máscaras não estão nas faces familiares do painel que trouxemos, o noticiário não nos assusta, o futuro também não e sabemos que já pisamos nele.

  Dificuldade agora é escolhermos um tapete para porta com alguma frase que identifique o que temos nesse apartamento, que começa essa noite. Coloquei um bloco de post-its no aparador da entrada para lembrarmos das coisas que importam: números de telefone, nomes de vizinhos, nosso CEP, senha da internet, dia de pagar a parcela do apartamento e que não estamos sós. Só para lembrar do que ainda não esquecemos. Não ser só - é uma boa frase para o tapete de entrada.



6 comentários:

Paulo Abreu disse...

Amanda,

Não ser só!!!!
Texto de uma suavidade lírica, fundamento básico de ser humano.

Valeu!

Amanda Machado disse...

Paulo,

Obrigada por não deixar esse texto só! E grata, sempre, pela doce visita.

Abraços

Bel disse...

Adorei!
Meu tapete seria:trouxe cerveja?

Amanda Machado disse...

Gracias, Iaiá!

Nananinanão...seu tapete tá pronto desde 2005: Uma hora dessa só pode ser parente!

Bel disse...

😆😆😆 tempos bons de praia cazamiga

Amanda Machado disse...

E voltará! Projeto Tamar tá suspenso desde então...Olha o impacto que isso causa ao meio ambiente!