quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Revisionismo amoroso

  Aquele jeito de partir o cabelo era seu mesmo ou fui eu quem o inventou? O tempo dos dedos da
têmpora à nuca, era mesmo real ou mais uma narrativa minha? Sete segundos de olhos fechados e dedos mergulhados em um espesso tapete castanho, as mechas que brilhavam ao sol e que ficavam ainda mais claras nas pontas. Os dedos mais quentes depois da travessia. Os olhos fechados que inspiravam a minha calma; o meu não-vazio durante sete segundos contados.

  O jeito que parava em frente ao filtro com água, com uma perna levemente dobrada e a mão esquerda na cintura, esperando o copo se encher, eu também inventei sozinha? E as palavras com d mudo que na sua boca sempre vinham acompanhadas da segunda vogal, só os meus ouvidos sabiam?
  As chaves de casa que sempre estavam com um chaveiro quebrado e  embaixo de alguma almofada e nunca na porta, era mesmo constante ou fui eu quem criou continuidade em uma ação esporádica ou única?

  Os cotonetes que você dobrava depois de usá-los e antes de jogá-los no lixo, fui eu quem criou essa imagem? As hastes dobradas na lixeira que eu abria e sabia que você era alguém que existia e deixava marcas. As dobras eram minhas? Vê que eu não sei mais nada? Vê que eu sou só dúvidas dessa história?
  As canetas espalhadas por todos os cômodos da casa e os blocos de papel para quem quisesse anotar um pensamento aleatório e dá-lo de presente a você, eu também criei? Eu inventei um ritual bonito desses sozinha? Eu já não sei se sei ou se sei que não sei nada.

  A saliva em pequenas poças na minha boca, o meu olfato mais rápido do que o carro de passeio e depois dos primeiros cumprimentos, a fruta apanhada no pé. E eu nem tinha trocado a roupa e por isso, tantas peças tinham marcas de nódoa. Eu gostava mesmo de ameixas ou gostava de comer ameixas no quintal da minha avó?
  Nunca mais eu salivei por ameixas, nunca mais o cheiro me alcançou, nunca mais pé, nunca mais nódoas, nunca mais quintal da avó. O que eu perdi primeiro, senão a invenção de que os domingos só eram por causa das ameixas.
  Nem na salada nem compota, nem pura nem torta. Eu não como mais ameixas.

  O cheiro de cigarro no cabelo macio dela, a palha, o fumo, as mãos enrugadas e escuras com manchas mais escuras e o olhar doce e triste-alegre, fui eu quem deu a ela? Porque não há fotos dela com os cigarros, com as mãos viradas para a câmera, porque não há um olhar daquele em nenhum álbum de fotos? Sou eu a mentir de novo? Essa mulher eu criei? A Cândida era outra? Talvez a da foto.
  As dores nas minhas pernas antes de me deitar, porque tinha andado descalça o dia todo, eu também criei? Porque nunca mais tive dores nas pernas por andar descalça. E se sim, por que eu inventava sofrer? Elas doíam, eu me lembro de sentir. Ou eu só me lembro porque inventei sentir? As vinte e cinco gotas de Novalgina ainda fazem efeito?

  A carta mais bonita do meu relicário, a página que sempre me segurou na instabilidade dos passos no escuro, já não é mais o que eu achava que era; só era emocionante naquele tempo. Reli hoje porque precisava daquele sentimento, queria a segurança que pensava só encontrar nela, queria tudo de novo, toda a emoção que pareceu morar nela; a minha história mais gentil, cativa da gaveta da escrivaninha. Mas não se repetiu a comoção.
  Fui atravessada por essa mudança, esse distanciamento de sentimento. As frases não fazem nenhum sentido para quem sou hoje, parecem copiadas de outras tantas declarações.
 - Por que vocês não sabem amar sem repetir signos?
 Eu não a rasguei, mas me senti enganada por mim, por dezenas de leituras em que eu via outras palavras. Aquela carta eu inventei. Nada ali, nada que me ajudasse a atravessar ponte nenhuma. Vou ter que fazer isso sozinha, porque a carta não ajuda em nada.

  Os olhos da minha avó no álbum são os olhos possíveis do retrato em preto e branco; os verdadeiros são os que só eu tenho. Não há nada de errado em ter outra pessoa, diferente daquela da foto. Eu acho. Porque eu quero continuar a inventá-la.  
  Eu não li a carta errada ou li errado a carta; eu escrevi a carta que você assinou, mas hoje a que eu encontrei foi, finalmente, a sua.
  Eu não me esqueci do jeito que você partia o cabelo, eu deixei de inventar um jeito que você partia o cabelo. Primeiro deixamos de inventar e o amor segue a desistência da fantasia. Deve ser assim. Deve ter sido assim todas as vezes. Agora eu sei que o amor morre quando a narrativa deixa de querer segurá-lo.





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