sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Ela não usa calça jeans

   O que eu sei dela é sobre o que me conta e do que posso ver desde que cheguei, mas as duas narrativas são suspeitas. A primeira, porque é uma versão ensimesmada de fatos e recortes que eu quase não posso confirmar, por falta de testemunhas; muita coisa se passou dentro dela e só. A segunda, porque ela é, para mim, quem sempre esteve, e isso por vezes atrapalha o espanto, a consciência da visão. Por isso muito deve ter me escapado ao longo de tantos anos. Costumes, escolhas e até predileções que eu só descubro depois de muito assistir sem ter visto antes.    Sei da tesoura exata no tecido, na mão firme   amarrando o cadarço do meu tênis, o meu cabelo em um rabo de cavalo, a alça do biquíni, o nó na sacola que eu precisava carregar.                                                                                                                                         Sei da precisão nas medidas do bolo, no sabão em pó na roupa, nos bifes para o almoço. Mas não sei quanto custou a ela cada aprendizado. Nunca a vi errar com a tesoura nem com as mãos. Mas deve ter tremido, deve ter deixado escapar algo, quando não podia. Sei das dietas e dos cortes de cabelo, do batom que nunca usou e o deu para mim, incentivando a coragem para o vermelho sem pudor. Porque para ela doeu. Por que para ela doeu? 
  
    O que eu sei sobre ela tem jeito de memória, embora ela seja esse presente diário e inevitável no corredor, com os chinelos que fazem um barulho que nem ela suporta. É ela a palavra estrangeira que  tenta acertar a pronúncia, o nome do ator que ela não se lembra, mas sabe do personagem de mais de duas décadas passadas. É ela a vontade de ler e a falta de concentração, os panos de prato bordados que ela guarda para usar no final do ano, junto com as capas de almofadas novas e os tapetes de banheiro. É ela ritualizando finais de ano, mesmo que diga:
  - Esse ano tô desanimada para fazer qualquer coisa.
   Ela é essa unha resistente e quase sempre sem esmalte, raspando alguma sujeira do azulejo, piso, fundo de panela. Ela é a base e o sutil acabamento das relações da casa.

  Então, quando a vendedora pergunta como ela é, fico confusa. Sei altura, peso, cor dos olhos - folhas secas, ela disse um dia - conheço o cheiro, a voz, até alguns pensamentos a quilômetros de distância, mas não sei explicar em palavras simples para a vendedora. 
  Sei das velas acesas, quando eu ia fazer prova de Matemática, dos livros usados e cartilhas com atividades que ela trazia sempre que ia ao Centro, para buscar aviamentos. Sei do cheiro de entretela, passada à ferro, do amaciante nas blusas de uniforme, do cheiro do alho no arroz; mas não sei sobre o cheiro preferido dela. 
  Sei das orações e dos desejos para os outros, mas não sei sobre os sonhos que ela tem para si; nem se ela sabe que os tem.
                                                                                              
   Às vezes andamos por lados opostos na calçada, mas sei dos olhos dela sobre mim; eles nunca faltam. Ela é um conjunto de ave-marias e padre nossos e santos anjos e Maria passa na frente. Ela é a Maria, ela é quem sempre veio à frente de tudo e todos. É a vanguarda não aparente.
  Mas para a vendedora, eu não sei dizer quem ela é. Sei os tamanho das roupas e que não usa verde. Mas não sei o porquê de nunca usar verde.
  Sei das suas cicatrizes, das cirurgias e dos remédios que precisa tomar diariamente, mas não sei sobre a perda da qual ela nunca se curou.  
  É a face  mais bonita na minha memória, cotidiano e dias muito ruins ou de felicidade intensa e eu não sei explicar para vendedora o formato do rosto para escolhermos um óculos de sol.
  Sei que não gosta de plavaras cruzadas, que gosta dos Sete Erros, que não joga dama ou cartas, mas gosta de bingos e que nenhuma aposta dela falha, mas erra muito quando joga e admite. Esse é o meu maior aprendizado; ela saber que não acerta sempre, mas ir até o fim com as suas crenças.
 
  Sei tudo o que posso saber dela até agora. E ainda assim ela é um mistério profundo e sedutor. 
  É a mão mais certa e as balas mais fulminantes. Quando ela atira não tem desvio; acerta o alvo. Sua precisão é dom e castigo; todo final de dia ela presta contas a si mesma, às vezes chora, às vezes não vejo.
  Ela é o nome do qual não gosta, a hidroginástica que abandona todo inverno, as mudas de plantas que desconfio que crescem, porque chegam pelas suas mãos. Ela é comum e fantástica. Como explicar a essa desconhecida, tão gentil,  quem é essa mulher?
 
    A vendedora tenta mais uma vez e traz uma dezena de calças jeans. 
  - O número é esse mesmo. Mas espera...Ela não usa calça jeans. 
  Lavou muitas, passou, aumentou ou diminuiu a bainha, comprou, presenteou,  fez calças jeans, mas não usa.
  - Moça, ela só não usa calça jeans.





2 comentários:

Bel disse...

que coisa mais linda! fora as jóias criadas ...

Amanda Machado disse...

Ahhhh...Gracias!
Mas joia é só uma, o resto é ensaio do ourive...hahaha