segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Derruba paredes, mas o que nunca soubemos é que a distância não é geografia

   Eu sei quando começa a ir. Sei também quando eu vou, embora minta que ainda estou. Minto para mim, porque a ninguém mais tenho interesse em enganar. É uma progressão sutil de afastamentos não impedidos; ou porque nos conforta que o outro tome a iniciativa da partida ou porque deixamos de perceber as malas no corredor. Em ambas as perspectivas, a partida se constrói sem volta. Arquitetura definitiva de desencontro. 
  Um muro erguido no meio da casa, uma escada que não alcança mais um sonho partilhado, piso frio instalado no cômodo que antes abrigava o amor. 

   Os primeiros a se apartarem, delicadamente, são os olhos, dispersam-se antes de qualquer palavra. Antes de voto, opinião, julgamento, fofoca, consulta ou partido. São pares que não se cruzam mais ou, se por acaso acontece, não permanecem muito mais tempo dentro. 
  Os olhos são os primeiros a se evitarem. Porque dizem exatamente a medida do fim. E ninguém quer admitir a ameaça do desmoronamento. Por isso continuam em teto precário, ouvindo a potência da chuva.

  - Vai cair!

  É o que percebem fora; é o  que anuncia dentro.
  Mas ninguém quer tentar segurar as paredes ou sair de braços dados com a covardia. Têm medo, mas não dizem; lamentam, mas fingem que a chuva logo passa e amanhã o sol secará o solo.
 Por isso permanecem sentados no sofá cinza, falando sobre nada. Por isso serão soterrados mais pelo que não fizeram do que por tijolos e lama.  

  A conversa permanece um pouco mais, até ficar arrastada e com silêncios mais demorados ao final de cada frase. Mas continua abundante ainda, tentando encher vazios, afastar medos, protelar desvios, imitar naturalidade. - Ah sim parece que chove mais tarde.- O Vasco perdeu a invencibilidade. - Não dá vontade de ser brasileiro quase dia nenhum. - Vou fazer chá, quer?  Gato tem disso de sumir, cachorro é que é verdadeiramente doméstico. Esse ano vai ter Carnaval sim, duvida? 

  As discordâncias assumem mais frequência, mas são cada vez menos aguerridas. No máximo, morrem em um lânguido: você é quem sabe.
   Você é quem sabe é o fim da linha, o último ponto, o derradeiro verso. Depois do você é quem sabe, nada mais pode. Não há réplica, tréplica, último golpe. O você é quem sabe é fim. O você é quem sabe facilita a despedida; o apagamento do que o outro pensa é o caminho do desapego, desamor; renúncia da lembrança.
 
  Depois de os olhos não coincidirem encontros, depois que as palavras forem as mais vazias e racionalizadas no sofá cinza durante o temporal, depois do desinteresse pelo pensamento único do outro,  afastam-se as mãos. Nem apoio, nem afago, nem partilha, nem tapas de acordar, nem guia, nem tatuagens iguais nas falanges. No máximo, um adeus muito mole do portão. E quando as mãos não puderem mais se tocar, a vida corre em duas direções distintas e inegociáveis. 
 
  Sob o mesmo teto, dividindo uma garrafa de café, as memórias de infância, as séries de TV favoritas, a genética ou o financiamento do apartamento, numa proximidade geográfica espantosa, que às vezes um corpo nem sabe onde começa e onde termina o outro corpo, a distância é abissal.
 A mão até sabe da outra ali do lado, mas não alcança,  a voz não chega, o interesse é outro, ninguém quer chá ou quer saber do campeonato brasileiro, mas são os alicerces dessa casa. Aprende a derrubar paredes e a integrar cômodos; loft ou estúdio, se preferir, mas nunca aprende que a invenção da distância não é da geografia. O afastamento é inevitável depois que os olhos não podem cumprir com a mirada, que um dia, foi a única desejada e, neste caso, derrubar paredes não ajuda.





          

Nenhum comentário: