
Procurava um poema que falasse de aflição sim, mas de sonhos no fim, sabe? Acabasse com a imagem de um cavalo azul que voasse com Vicente.
Talvez um gato amarelo que colocasse as suas patas sobre o tapete e mansamente ganhasse a sala e a solidão de uma dona que não tem nada, ajudasse a preencher esse dia. Um gato que não anunciasse companhia definitiva, mas que domesticasse a sua presença de instante. Um bichano que não tivesse pressa em partir nem promessa de futuro.
Procurava um texto que falasse de dores agudas, mas que tivesse mais versos de apaziguamento. Talvez um poema que falasse de amor de outro jeito. Podia ser sem anel, até sem beijo. Podia ser sem humanos, amor entre bichos; talvez fosse o que precisava.
Quis um querer mais manso, num mesmo tempo que fosse arrebatador e que carregasse junto sem anúncio. Chuva torrencial, sem desastres, uma ou outra folha de árvore solta ao vento, mas sem desenraizamento ou troncos arrebentados. E se não for possível isso, o que escolher, estiagem ou afogamento?
Talvez um arranjo simples de flores colhidas, porque já estivessem a ponto de murcharem, em cima da mesa da sala e já preparasse esse dia para ser menos vazio. Quis um bolo de fubá para o café da manhã, mas acordou ao meio-dia. Quis uma ligação no meio da tarde e uma confidência feliz, que não precisasse de testemunhas, mas que quisesse porque era muito contentamento para carregar em poucas mãos.
Quis ligar a TV e assistir a um anúncio que não vendesse nada, talvez um filme de nós dois em preto e branco, que evidentemente nunca existiu, porque nunca nos deixamos ser filmados. Ou então, que fosse um filme italiano neorrealista que não tivesse intervalos; só me levantaria depois de muito chorar.
Talvez ajudasse ter um dia que não precisasse fazer troca monetária alguma. Sem contas, sem números, sem valores, sem extratos, sem CPF e número do cartão. Talvez se eu me arriscasse a cometer um pequeno crime, espantasse o tédio da manhã vazia. Um roubo sem pular muros, o assassinato de algo que só a mim pertencesse e por isso não poderia ser flagrada e punida; um sequestro tão curto que não levantasse suspeitas e não exigisse pagamento em notas sem marcas.
Quis uma resposta, um apontamento, um sinal de qualquer entidade mística que viesse numa palavra cruzada. Mas que deusa se sujeitaria a uma aparição numa revistinha ordinária? E o mais importante, eu saberia ouvir vozes que não são as mundanas?
Talvez nem mereça um milagre; como as duas meninas que moravam na minha rua e que passavam muitos minutos, olhando para as paredes dos prédios, esperando a aparição de uma santa, depois de lerem o Milagre de Fátima. O que esperavam aquelas meninas? O que eu espero?
Os milagres cotidianos são outros, ninguém conta nos livros. Aquelas meninas que nunca mais vi, já devem ter tido muitos outros. E a minha resposta não está na Coquetel nível médio.
Tentou, logo cedo, uma ásana que fortalecesse as estruturas, mas flexibilizasse os comandos. Expansão e contração, inspira e expira. É preciso que joelhos, assoalho pélvico, lombar e decisões estejam fortalecidos. É fundamental flexibilizar articulações e, ainda, abrir o quadril e as percepções. Quis ser uma iogue da vida, ao menos nessa manhã. Ser comprometida sem seriedade, aberta sem vulnerabilidade, forte sem inércia. Quis fazer do apartamento um ashram ocasional e recitar muitos mantras, aprender em silêncio e orar sem pedir.
Quis um poema, um gato, um texto, um querer, uma aparição, um crime, um gosto, uma ordem, uma contemplação, uma só resposta. Mas talvez já tivesse tudo e não entendesse.
Talvez, como o milagre esperado pelas meninas, tudo viesse noutras paredes, que não aquela que miravam por minutos.
Foi ao supermercado e, enquanto esperava na fila, comeu o bombom do papel celofone rosa, mostrou o papel vazio à caixa e ela escolheu ser comparsa do crime não premeditado. Não houve, ao menos, essa troca monetária. Foi esse o milagre que eu não esperava; uma salvação embalada em papel celofane rosa.
2 comentários:
Minas Gerais, 10 de setembro de 2020
Prezada Amanda,
Gosto desta candura da suas prosas. Esta poesia que emerge da leveza das suas palavras. Apazigua a gente diante de tanta coisa que se vê por aí.
Texto de uma humanidade digna.
Um abraço
Paulo
Minas Gerais, 10 de Setembro do desafiador ano de 2020
Caro Paulo,
suas visitas e leituras são também afagos generosos, que em tempos cinzentos brilham ainda mais.
Gracias siempre!
Abraços
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