Diferente do ano recente que passou, nós não vamos planejar as nossas férias com antecedência. Está menos seguro, ninguém sabe quando isso acaba e estamos sem datas até para nossa liberdade simulada. Não sabemos onde exatamente os vírus estão; só sabemos que por quase toda a parte. E eu que sempre lavei tanto as mãos e o fundo dos sapatos quando chego da rua e passo pano em todos os cômodos da casa diariamente; ainda acho que não sei como evitar a contaminação.
Nós não vamos fazer uma festa surpresa para você esse ano, isso é certeza. Talvez umas mensagens à distância, uns ramalhetes de flores à sua porta, mas sem outros abraços. Pode suportar esse aniversário sem outros braços que não os meus?
Podemos combinar hoje alguma coisa no quintal de casa mesmo; não esperar pelas férias, pela praia, pelo pagamento ou pelo seu aniversário. Não fazemos listas, cronogramas de descanso para um futuro, cálculos com o que temos na poupança, mas vivemos o ócio no agora, depois do banho. Sem prestações, sem telefonemas, sem boletos em suspensão. Amanhã voltamos às notícias, às desesperanças, aos pessimistas que estão na nossa estante.
Hoje podemos inventar férias. Comer o que quisermos, beber o vinho, dormirmos a hora que o sono verdadeiramente avançar e até escolhermos postais para enviar; há muito não escrevo num postal aquelas palavras sempre ternas de alguém de quem se lembrou quando está feliz; prova maior de importância.
Já não podemos chamar os amigos, porque é arriscado, porque eles não vêm e não têm que vir, se são mesmo nossos amigos.
Agora, somos no mundo o que éramos no início dessa suspensão: um para o outro ou um e outro, mas par. Que é o que começávamos a ser sem perceber, antes de não termos mais ninguém. Agora se essa parceria foi escolha ou acomodação, não saberemos; não do outro lado. De cá sei eu, daí talvez saiba você.
Nada de certo agora, talvez uma agenda semanal; que se cumpre ou não, que parece menos urgente a cada mês. Sabemos menos a cada descoberta nova, as pesquisas são menos acalentadoras, mas há quem não use máscaras.
O que eu sei é que os meus números ainda são os mesmos:180; 39, 58, 36016440; mas que nada além disso permaneceu.
Sei também que continuo sonhando e tendo muita insônia; que ainda acho que abismos e precipícios podem ser construídos com a ponta de uma caneta e que redes de proteção e camas elásticas também podem ser tecidas com palavras. Que eu me alimento muito de poesia e às vezes as notícias me dão náuseas, que eu confio demais e desconfio de tudo; que eu queria ter me despedido sempre da maneira mais bonita, mas acabo sempre correndo para ir embora.
Eu sei que essa música que você me mandou hoje eu já conhecia, mas que ouvi-la depois da sua mensagem fez ela ser outra e fez, de novo, você ser outra para mim. Que estar há tanto tempo sem ir a alguns lugares me faz querer não voltar a eles e que outros que eu pouco frequentava, agora, eu reconheço que sempre foram mais importantes para mim. Que não muda nada só porque são outros os números do dia, mês ou ano, mas nada nunca é igual, nem aquilo que desejaríamos fortemente que se repetisse.
Que novembro é um mês de cansaço e um pouco de projeção de futuro, mas que nesse nem podemos planejar a praia. E ficamos só com o cansaço então? Eu não quero.
Sei que sempre acho que tenho as melhores amigas e que quero que elas fiquem amigas das minhas amigas, são elas que me enviam postais e para as quais também quero enviar. Que a procrastinação é uma praga e que fazer isso com a alegria ou com os pequenos prazeres é sacrilégio. E que eu não quero, não quero e não quero.
Que por enquanto, só sonhamos. Que vamos beber vinho e dançar no nosso quintal; que o futuro sempre foi incerto, mas que a instabilidade dele hoje brilha mais que o farol em estrada tomada por breu.
Que vamos nos adequar, vamos continuar reclamando, que vamos chorar pelas perdas e que vamos olhar além dos muros logo que pudermos.
Que eu vou comprar mais brincos e menos comidas, que eu vou economizar mais e que eu vou para Itália quando isso tudo passar, capite?
Acho que há 39 finais de ano tenho o mesmo medo: de não ter vivido tudo aquilo que podia. Sente isso quando vê as luzes de natal? Eu acho que esse ano as luzes serão de outro jeito, só ainda não sei qual.
6 comentários:
voto para menos brincos e mais comida (e bebidas!)
Samuel Beckett ficaria orgulho deste título! Excelente texto, gostei muito!
Bel, cismei com brincos...acho que por causa da máscara, que limita um pouco. Voto para você cozinhar (berinjela talvez), trazer para mim e abrir essa sua geladeira sempre abastecida!
Seria gentilíssimo da parte dele... E é da sua também! Obrigada, John!
Amanda,
Pensei em tantas variáveis a caminho deste comentário, mas seu texto é completo, não carece de comentário. Lindo, duro, tenso e real.
Um abraço
Paulo
Caro Paulo,
Que generosidade considerar esse ou qualquer outro texto daqui completo... Mas acho que com a sua intervenção, sempre oportuna, quase os fazem.
Gracias,
Abraços
Amanda
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