sábado, 28 de novembro de 2020

Eu achei os seus sonhos em uma caixa de papelão aqui na esquina

  Nátalia, eu achei. Voltava da caminhada noturna, agora há pouco, e os encontrei. Estão na caixa que escreveram para você. Vi em letra de forma, todas maiúsculas, em caneta hidrocor preta; era instrução, dedicatória, ameaça ou título de alguma obra, Natália? Tive dúvida quando eu li: "Para Natália, com todos os nossos sonhos". Letra firme, palavras fortes. "Todos os nossos sonhos"; é pesado, não?
  E a caixa não era tão bonita ou delicada o que, de repente, sugeriria um bom repositório de sonhos. É tosca, de papelão cru, sem nenhum enfeite, caixa comum,  bem baixa e larga, como aquelas embalagens de camisa ou de latas de molho de tomate. O que cabe de sonho em uma caixa dessas? Qual o volume desses sonhos que couberam numa caixa?
 
  Natália, desculpa perguntar, mas dividia seus sonhos com quem? Porque na frase da caixa era bem explícita essa partilha. Não eram os seus sonhos, eram os seus e de outra pessoa. Uma ou um amante, mãe, amiga, sócia? 
  Não importa, Natália, porque a minha curiosidade maior é: eram sonhos em comum ou sonhos individuais que foram confinados juntos na caixa estreita de papelão cru? Porque isso faz diferença. 
  Ao abrir mão de sonhos em comum parece que a ferida fica aberta mais tempo. Ao menos eu acho, Natália. Porque existe alguém, além de você, a lamentar por uma morte, um fim, uma impossibilidade. Se é sonho individual, passamos pela vida, fingindo nunca termos alimentado uma promessa que só existiu intimamente. Também há o luto, mas sem testemunhas e isso nos dá a chance de uma outra narrativa, sem interrupções.

  Mas o que há exatamente na caixa, Natália? Porque sonhos guardados  é metáfora, não é? O que haveria de caber na caixa que representasse esses "nossos sonhos"?  Recortes de revistas com uma vida futura simulada, projeto de casa,  um plano de negócios, lista de presentes de casamento ou convidados? Imagens de bebês, animais domésticos ou ícones turísticos, o contrato da compra de um apartamento ou carro?   
  Ou era uma revolução, Natália? Era isso? Um inventário de obras literárias para uma biblioteca pública, um espaço cultural, um projeto de alfabetização em áreas rurais ou ribeirinhas, alguma cooperativa, o registro de um bem cultural quase desaparecido? Porque se for algo assim, Natália, talvez fosse o caso de resgatar a caixa. Que a outra parte não queira seguir é compreensível, mas que ambas abandonem ao mesmo tempo, um sonho grandioso, é tão desolador.
 
  Natália, ouça, eu não quero ser invasiva, dar palpites nem conselhos a uma desconhecida, mas ver a caixa ali, encostada no poste, junto do lixo, com o inusitado enunciado "nossos sonhos", me deu uma pena, uma angústia e, depois, curiosidade também. Porque me interessa o que as pessoas descartam, mas, principalmente, com o que sonham, antes de jogarem fora. 
  Então, se puder, me diga: os seus sonhos partilhados foram partidos ou realizados? Os seus sonhos em comum ou individuais, mas que dividiu a intenção com alguém, perderam-se no espaço, no tempo ou a vontade de tê-los? Que vento é esse que muda o rumo das nossas paixões, Natália? Há mão possível que nos faça parar em alguma paixão ou não? É assim mesmo, de tempos em tempos dividimos e abandonamos, sonhamos e desiludimos?
 
  Natália, você desistiu desses sonhos ou só da caixa? Talvez eles tenham ganhado outros lugares, tenham transbordado da caixa e vocês seguem, colecionando outros sonhos em caixas maiores ou libertos de limitações, espalham por aí os sonhos que antes cabiam numa ordinária caixa. 
  Talvez a caixa esteja vazia. Mas se sonho nenhum estivesse ali, bastava dobrar o papelão, amassar para caber em saco de lixo e nenhuma transeunte muito sensível perderia o sono, imaginando o conteúdo de uma caixa para Natália. Agora estou eu aqui nesse imbróglio, tentando desvendar um frase numa caminhada.
   Ou, quem sabe, você tenha insistido e até esteja procurando a caixa que alguém descartou para feri-la; e se for isso, como eu faço para indicar o caminho para você? É esquina da Olegário com a Belo Horizonte, do outro lado de uma oficina mecânica.
 
  Parece que vai chover essa noite, vi na previsão e já ventava bastante forte, quando eu cheguei em casa. Então, tudo bem se a caixa molhar? Tudo bem se os sonhos confinados na tosca caixa inundarem de água e desistência? 
  Olha Natália, eu acho bonito quem desiste, mesmo! Acho que é a decisão mais difícil e certa que alguém pode tomar quando não consegue mais carregar algo. Porque eu, Natália, vou em frente e, às vezes nem sei porque carrego a coisa, entende? Natália, desista. Está certa; se não cabem mais em você ou você neles, para quê insistir?

  Natália, eu achei os seus sonhos em uma caixa de papelão aqui na esquina e não consigo parar de pensar na imensidão de sonhos que habitam as esquinas pelas quais eu passo todos os dias. Sonhos sem caixas, sem identificação, sem pronome possessivo na primeira pessoa do singular ou plural, sonhos descartados ou perdidos, incendiados ou diluídos em tempestades, sonhos órfãos ou viúvos, sonhos sem família e amigos, sonhos invisíveis, embora robustos e ainda esperançosos. 
  Sabe de uma coisa, Natália, vou me vestir e ir atrás da sua caixa. Se a empresa de limpeza urbana não passou, terei os seus sonhos comigo e guardarei até você achar que ainda te pertence.


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