quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Que me livre, que me leve, que me oriente, ainda que sem me chamar

  Ela é  uma bússola nos dias de maré desencontrada, um corredor de vento leve que dissipa a neblina numa manhã de implacável inverno; uma sensatez amorosa que pousa na minha janela, a qualquer dia e hora. Ela nunca me pediu licença para estar, eu nunca tive que gritá-la, mas ela chega no momento exato da minha dúvida.                      

  Eu que tive muito medo de falar sobre ela, mas todas as vezes que eu omiti a sua presença foi por não querer perdê-la. Tentei guardá-la só para mim, ouvir os seus conselhos e abrandar minhas angústias longe de outros, sem dizer a ninguém o lugar da minha fonte. Mas, um dia, não aguentei mais. Quando ela esteve num limite de existência, eu fiz a minha declaração pública de agradecimento e admiração profunda. Ela ainda não sabe, mas é um dos mais remotos colos que eu visito sem estar.             

  Não temos aqueles laços que inferem familiaridade ou relações íntimas. Só sabemos os nossos primeiros nomes e conhecemos olhos, sorrisos e eu, a voz dela, o sotaque dela, a razão toda que ela tece quando fala e o jardim que planta. Ela não me atende, não chega à minha janela por mim, mas ainda assim me afeta.
    A filha dela, que é a minha vizinha, é quem ouve os seus recorrentes conselhos. São para ela, mas eu quase sempre me beneficio deles;  nunca se conectam exatamente com o que eu preciso, a filha dela e eu não partilhamos das mesmas dúvidas, mas ainda assim, eu espero com atenção o que ela traz. Eu achava que a inteligência se refinava com a passagem das gerações, mas ela explica para filha um mundo que deveria ser mais da mulher jovem do que dela. E acho isso a beleza maior do mundo,  alguém que não se cansa de aprender e que também explica.
 
   A figura dela é a minha memória antes de ser. Ela também é a minha casa, parece que o quarto, a sala, a cozinha, o banheiro são menos meus, quando lá é silêncio. Não me sinto só, quando ela não fala, porque tenho outras presenças, mas me sinto menos encontrada se não há um conselho com o qual eu possa me cobrir antes de dormir. 
  Ela tem somente quatro décadas a mais do que eu, mas parece saber do mundo muito antes desse tempo. É uma sabedoria generosa, cujo olhar é sempre mais positivo e esperançoso do que eu posso ter sozinha. Ela não diz: 
  - Não confie nele.
Quando dá conselhos amorosos para a filha. Ela diz:
  - Confie em você, no que o seu coração e a sua cabeça são capazes de julgar certo e bom para você.
  Ela não diz:
  - Se acostuma que a vida é isto.
    Ela diz:
  - Isso é só uma parte da sua vida. Não é ela inteira.

  As filhas, o neto, o cão, a funcionária e eu, todos somos parte da sua corte; de um reino urbano, cheio de ternura e luta, ao qual ela não abandona nunca. 
  O marido dela eu não conheci, ela já era viúva quando eu me mudei para o prédio ao lado das casas dela e da filha. Ela nunca fala dele, já ouvi sobre a mãe e o pai, uma irmã, algumas tias, sobre a outra filha, o genro, mas do marido nunca. E essa ausência na narrativa, me faz pensar que ela também tem o poder invejável de escolher suas memórias. Não exatamente sobre o que lembrar, mas sobre o que quer se lembrar.
 
  Às vezes queria tê-la para mim, explicando cada coisa, ajudando nas respostas que eu não sei. Quem é confiável, a que horas o ônibus passa, qual é o melhor açúcar se o demerara ou o mascavo, quantos saques eu posso fazer no caixa eletrônico por dia, se o amor ainda vale ser esperado e se sim, até que horas. 
  Mas noutras vezes, parece que já a tenho em mim, dizendo para não me envergonhar do que ofereço, para não me limitar às bordas e assumir meus mergulhos. E eu sorrio para condescendência dela e seu pouco espanto para os meus segredos.
  Ás vezes eu queria que ela me recebesse em casa, quando eu chegasse muito angustiada por uma decisão que já é minha, mas ainda não sei como anunciá-la. E em alguns minutos de conversa e chá quente, que ela sempre oferece à filha, eu entenderia a minha coragem ancestral e encontraria o caminho. 
 
  Ela é amor, eu acho. Porque não se cansa de aprender, é ilimitada na doação e oferece paciência e escuta aos mais desvalidos. Ela é amor, porque nem sabe que eu preciso dela, mas chega sempre com uma laterna e engendra o meu resgate.
  Ela é amor, porque oferece as coisas da ordem prática, um secador de cabelo, o conserto da bomba de água, o pagamento do boleto da internet e da TV por assinatura. Mas também  o chá de Melissa, as flores que ela planta  e a generosidade de quem não cobra perfeição das coisas, tampouco das pessoas..
 Que esse amor me liberte, incontáveis vezes, como tem feito; que me leve aos lugares que eu não sei que existem, que oriente os meus descaminhos, quando eu encontrá-lo na esquina da indecisão, ainda que sem me chamar pelo meu nome. Que ele não venha por mim, mas que venha sempre e me deixe ficar sob a sua sombra.

                                                    

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