sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Talvez a única certeza seja a de que eu estive lá

  Talvez não tenha sido como eu contei, durante esse tempo todo eu posso ter estado enganada; possivelmente não foi mesmo. 
  Talvez as margens fossem menos distantes, os dedos tenham ficado menos enrugados e eu não tive uma cãibra na metade do percurso; talvez tenha sido só medo.
  Talvez eu não tenha entrado sozinha,  pode ser que o meu mergulho profundo tenha sido acompanhado, mas que em determinada altura eu tenha mesmo me percebido só. Não abandonada; somente só. E não porque entrei sozinha, mas porque me deixei levar por uma das várias correntes. Talvez o outro nadador ainda esteja lá, pensando naquilo que eu  também acreditei: ela não entrou.
 
  Mas entrei.
  Talvez eu tenha perdido a explicação do dono do barco e não tenha sabido localizar o farol, o continente ou o lugar da corrente que me traria de volta mais rápido. Ou talvez ele tenha nos deixado lá sem preparação, sem treino; entregues a nossa própria coragem. Eu estive e talvez você também estivesse.

  Talvez ter chorado na água não tenha sido meu pior momento. Talvez você também o tenha feito e as nossas lágrimas se cruzaram por ondulações que nunca mais se repetirão no mesmo lugar. 
  Ou, quem sabe, você tenha me visto chorar, mas não alcançou o meu tempo de mágoa, de desespero, de cansaço. Talvez chorar tenha sido a minha redenção, pois o meu estado de raiva pura, de genuína cólera me deu energia, força, me deu o desejo de continuidade, de não afundar ressentida, de não afogar sem vingança. Porque foi depois de toda a desorganização de lágrimas, soluços e gritos no escuro que eu compreendi que nadar era a minha responsabilidade vital. Não tinha quem viesse me tirar da água, se eu não avisei a ninguém que eu entraria.

  Talvez os enganos da história que eu contava tenham sido combustíveis, parecidos com a raiva estimulante nas braçadas daqueles dias. Talvez manter a raiva acesa tenha me trazido, por algum tempo, a caminhar as distâncias necessárias para serenar. E é isso que eu desejo agora: flutuar em correntes menos obscuras, mais aprazíveis, menos perturbadoras.
  Talvez seja a hora de me despedir dos mil sóis que me queimaram e aceitar a lua imensa que a noite sempre ofereceu, mesmo quando eu não via. Talvez seja hora de parar de recolher o meu silêncio para depositá-lo nas alças do meu maiô. Talvez seja hora de espalhá-lo na água, na areia, nas mãos de quem também puder suportá-los.

   Talvez não tenha sido o risco de afogamento que me fez andar mais pelos continentes e experimentar menos das outras águas, depois desses dias. Talvez seja saber que ao entrar na água, eu já não tenho o controle de onde ir; só sei que não me afogo. E nadar perdida talvez pareça mais angustiante do que perder o fôlego.
  Talvez eu precise aprender a não temer fazer o caminho das águas sem promessas de farol, sem  garantias de salva-vidas do outro lado; sem bote, sem toalha e caldo quente, depois de um resgate na madrugada. Talvez eu deva continuar mergulhando.
-  Respira, você está só, inspira raiva e siga; só siga.
 
  Pode ser que o algoz nem fosse tão mau assim, que não tido um propósito a dor que me causou, talvez os meus limites não tenham ficado evidentes. Talvez a minha margem nunca cruzasse com a que ele desejava alcançar. Talvez eu precise mesmo comunicar ao nadador eventual sobre os meus limites; com faixa amarela e preta, placa de sinalização e luzes alaranjadas.
  Talvez nadar possa ser mais prazer e menos luta; mais molhar o cabelo do que engolir água; mais hobby do que missão. 
  Talvez nadar e mergulhar possam ser atividades independentes, também para mim. Se eu mergulho, não significa que eu vá mesmo continuar por muito tempo na água ou se eu escolho nadar não é necessariamente em águas profundas. Talvez eu também aprenda essa distinção sem cinismo.
 
  Talvez eu me torne uma nadadora contumaz e explore muitas águas, sem temer destinos, sem lamentar as desistências ou correntes diversas das minhas, sem cursos de sobrevivência, sem garantias; só raiva e desejo de continuidade.  
  Ou, talvez, eu só seja a escafandrista de objetos, afetos, cenas, nomes abandonados em baús submersos; desassossegada e sem bússola. Talvez encontrar o que não é meu  e negociar em casas de reputação duvidosa seja o meu destino oceânico. Talvez a única certeza de qualquer história que eu vá contar é a de que eu estive lá, porque eu mergulhei até o fundo. Eu mergulhei.




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