sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Lembro de uma carta, um gole de café que queimava o céu da boca e da conversa do casal da mesa ao lado

  Lembro de uma cozinha quente e pequena, canecas esmaltadas penduradas na prateleira, na parede ao lado do fogão, do cheiro de café quase o dia todo e de que eu não bebia café. Das soleiras das janelas com flores plantadas em potes de margarina, dos olhos dela, castanhos amendoados, das mãos morenas e do colo morno com vestido florido.
  Lembro dos chinelos nos tapetes, das redes recolhidas na varanda, durante a manhã e dos retalhos das colchas.

  Não me esqueço das camisas de tecido do meu pai, das duas dobras nas mangas, dos botões delicados, das calças com vinco e cheiro de amaciante. Aos domingos, tão elegante esse pai. Me lembro da missa, do Credo e da Salve Rainha inteiros, às vezes testo a memória para saber se ainda vêm à superfície e se ainda salvam.
  Lembro das mãos da mãe com uma toalha embebida em álcool, aliviando a dor de garganta, a toalha quente, aliviando as cólicas e a pipoca feita na panela, aliviando a dor que ninguém vê.
 
  Me lembro do cheiro das hortênsias do jardim da casa vizinha, do cheiro do bolo às quatro da tarde aos sábados, do cheiro de chá-mate com leite. De temer não trazer o troco certo da padaria, de olhar para os dois lados da rua antes de atravessar. Da professora de aulas particulares que fazia doces, flores de tecido, enquanto eu brincava com o cão e estávamos sempre atrasadas nas lições.
  Lembro do barulho da bola de futebol no quintal, do olhar protetor da irmã e do sapato de verniz que eu herdei dela.
 
  Não me esqueço dos números dos ônibus que eu ia para a escola, dos que eu podia pegar para ir ao curso de inglês e do setecentos e catorze que parava em frente à casa da minha avó. Lembro das datas de aniversário de gente que nunca mais vi, da tabuada do nove, dos telefones que eu mais discava, da altura de cada morador da casa, mas as idades eu perdi há muito.
  Lembro das músicas preferidas das pessoas que, um dia, foram a minha preferência entre as gentes e ainda lembro das vozes delas, que nunca perdi.

  Não me esqueço de um cavalo azul, desencontrado de um menino, seu dono, e de um peixe dourado que se perdia da mãe, de uma boneca com cabelos ruivos, de um conjunto de xícaras de plástico amarelo, de um relógio com três opções de cores de pulseira. 
  Lembro de tardes longas e finais de semana que corriam, do frio da manhã e dos pijamas de flanela que esquentavam em qualquer noite. Dos três irmãos idosos que moravam na casa da frente, do João eu me lembro mais, porque ele sorria muito.
  Lembro de um fusca vermelho, de um branco e de um azul que ficavam mais tempo nas garagens dos donos do que nas ruas. Lembro dos irmãos C e dos irmãos L, trios de filhos com a mesma inicial; invejava  esse grau de organização dessas famílias.
 
  Lembro, com completa clareza, de cada uma das mãos que se entrelaçaram às minhas, das que nunca me alcançaram, embora parecessem próximas e das que partiram. 
  Lembro do que cada toque me fez sentir, de alguns eu preferia não me lembrar, mas não se apagaram ainda. Lembro dos corpos que eu visitei e nos que quis morar, do cheiro, da temperatura, da textura da pele e da umidade dos beijos. Lembro do encontro do meu quadril com outros mundos, das minhas pernas, encontrando outras e da languidez depois dos desejos.
  Lembro dos lençóis e da vontade de ficar mais tempo ou de ir embora logo. Lembro dos carnavais em novembro, dos adeuses em maio e das fogueiras em agosto, fogo alastrando sem controle algum.
 
  Ainda lembro do primeiro e do último amor. Só falha muito a lembrança de quem eu era, perdida em  cada memória. É redentor e trágico estar apagada de si. 
  Ainda lembro da coreografia e das marcações no palco, mas esqueço de não me deixar ser levada pelo ritmo da música - é um erro.
  Lembro de uma carta, um gole de café que queimava o céu da boca e da conversa do casal da mesa ao lado, mas não me lembro o porquê de eu nunca assoprar o café antes de levá-lo à boca.

 




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