quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Talvez porque nunca dividimos o mesmo barco

 
    Então pensa que, na verdade, não teve encontro. E parece estranho voltar  a isso agora, quando nem sabe de saudade, de desilusão ou de desejo de nunca ter estado lá. Parece que algumas poeiras revisitam do nada; quando já está tudo varrido, limpo e o lixo aparentemente recolhido. Em algum móvel  esse grão estaciona e, com ele, filegranas de lágrimas e compreensões atrasadas. Não teve encontro e essa poeira pousada no agora a lembra disto. 
 Fatalmente  o recorte errado e antigo, aquele imaginado até recentemente, é substituído por esse novo - um pouco indigesto, mas também libertador.

   O que existiu foram duas pessoas que chegaram em lugares diferentes, embora partilhassem o mesmo espaço; noutro tempo, embora dividissem um mesmo ponteiro de relógio e número no calendário. 
  Não teve encontro. E isso é absolutamente demorado e profundo para entender.
  Foram pares de mãos disponíveis em dimensões que não se encontraram, embora, em algum momento, pareceram se tocar. 
  Foram vozes sobrepostas que impediram que o encontro acontecesse. 
- Fala você e eu escuto. Depois falo eu e você me ouve.
  Não teve isso.

  Alguém discursou para ninguém, alguém se calou e, nesse instante, só encontrou silêncio. Não há comunicação possível quando é só tormenta. Encontro é permissão da calma.
   É nado sincronizado;  atenção a cada gesto, não perder o ritmo do outro, o olhar do outro, saber que o passo não é só, mas espelhado, ser somente quando o outro também é.  
   Pausas entre as respirações, continuação depois da segunda exalação. Os cotovelos dobram-se e são esticados em um mesmo milésimo de segundo. Então, se o maiô sair do lugar, se o protetor nasal deslocar com onda feita depois de uma virada brusca; ou o outro percebe e também recua ou segue sozinho, admitindo a falha da dupla. Dois grandes nadadores não garantem uma boa dupla de nado

  Não foi encontro, mas às vezes a mentira é partilhada. A vontade do encontro existe e a fábula é encenada. Mas a atuação não dura, tem mesmo o tempo contado. Não houve encontro e não morrer afogada nessa epifania, depois de enxergar a poeira, é se salvar de qualquer correnteza de arrependimento e culpa. 
  Não houve nado sincronizado e o desejo não garante nada, porque é ensimesmado e narciso. Desejo não tem a ver com partilha e, para o encontro, dividir é essencial.
  Então, chamamos os dois atletas e os dispensamos da competição. Ao menos desta, ao menos do fardo de tentar imitar esse outro, a quem não podemos acompanhar.

  Definitivamente o encontro nunca existiu, mas as músicas, os mergulhos ensaiados e os encantos outros dos dias, como  as vezes em que se ouviu alguma voz, que não a própria, as ondulações azuis da piscina, batendo nas costas, a respiração do outro, ainda sobrevivem em alguma parte nossa. O encontro às vezes acontece com a nossa própria incapacidade de existir em dupla.
  Não houve encontro com o outro, mas a poeira delicadamente impulsiona a lembrança de que o nado é possível ser uma beleza solitária.
 
  Nunca houve encontro algum e talvez existam muito menos - a cada dia menos - do que acreditávamos quando nos preparávamos para a entrar na piscina. Os encontros se tornam mais raros, mesmo se o medo da água não exista latente como antes. Mergulho e coragem não garantem encontros; ternura e disponibilidade também não. Nada garante encontro algum.
  À borda de um retângulo azul, me lembro de todas as vezes em que  me custou muito a seguir sombras de nadadores que nunca copiaram os meus gestos, à borda do tanque de azulejos, me lembro de também não me atentar ao ritmo que o outro conseguia alcançar. No fundo, somos nadadores solitários, querendo quem nos acompanhe sem acompanharmos.
 
  Ainda não houve esse encontro na água cercada, tampouco na amplitude de um mar aberto. Até pareceu que, quando a onda viesse, teríamos um ao outro para pensar em salvar. Mas nunca dividimos o mesmo barco, e isto às vezes só se percebe muito tempo depois, já no continente.
  Me levanto do sofá e sopro a poeira instigante da lembrança desse vazio que um dia tentou ser encontro. Barco, piscina e nado; às vezes o mergulho interior é o encontro que importa.







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