segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O amor não é nada daquilo que eu jurei que era

   Não é corrente espessa, quente e arrebatadora, tampouco brisa fresca e calmante.  Não é lava de vulcão nem ventos alísios.
  É, constantemente, morno, às vezes, modorrento; sabe para onde deve ir, mas não se move, deixa-se completamente entregue, preguiçoso e mendigo.
  Tem olhos parvos, ombros desalinhados, cabeça complexa, lábios rachados e voz incerta; gagueja quando é pressionado. E nem sempre manifesta bom humor. Não preenche completamente nunca, nada, mas também não deixa espaços amplamente vazios. Não é afeito a rodeios, mas não sabe se explicar em linha muito reta. Às vezes se cala, mas nunca silencia outra voz.

  Não demora tanto quanto dizem e, por isso, não deixa esperando coisa nenhuma. Mas também não chega adiantado, antes do preciso tempo. 
  É sempre sua a hora, qualquer hora. Nenhum outro assunto o precede ou tem mais importância do que ele, que chega num tempo sem agendamentos, sem avisos antecipados, sem palmas do lado de fora da casa. Entra, quase sempre, de um jeito pouco educado, mas sem violências; parece alguém que chega já muito acostumado. Não se atenta aos cerimoniais.
  É estranho porque pousa,  às vezes, parece ficar por um brevíssimo tempo e só depois que foi embora, é que entende-se subitamente a sua força. Não requisitava mais minutos para a sua eternidade selada.

  Não é translúcido, mas também não tem essa infinidade de opacidades justificadas por aí. É identificável sim, mas nem sempre compreendido. Talvez porque se esperasse outra coisa, de um outro jeito, com cor que não essa, com vestido menos amarrotado e modos mais refinados. Porque não é bem essa voz que esperava ouvir ou essa pele que devia ser sempre macia, como as pétalas ou pêssegos dos sonetos.
  Talvez achasse que os olhos seriam outros, maiores, mais escuros; os lábios mais carnudos e as pernas menos finas; daí que veio esse e já não sabemos se esperamos o próximo ou é isto mesmo.
 
  Não é único, mas também não varia tanto depois que chega; é uma espécie de tédio mesmo, de espera por olhares novos sobre a mesma coisa. Não tem pares de asas ou brilhos celestiais; ao contrário, é uma humanidade demasiada; com todas as fraturas expostas, com as feridas sanguinolentas, as cicatrizes saltadas, os hematomas nas duas canelas.
  Não é bonito sempre, às vezes é mais belo para quem o assiste, mas é confortável, tal qual uma calça de moletom muito velha. Cabe tão bem, que não pensamos noutra roupa, ao menos não agora. Colado ao corpo, mas sem apertar e não desce ao abaixarmos. É exatamente do nosso tamanho, ajustado desde o cós à bainha; sem necessidade de costureira ou alfaiate para pences ou abrir costuras.
  
  Não é tanto de arrebatamentos românticos, mas de surpreender no banho, com a queda da energia, porque se esqueceu de pagar a conta de luz ou com a chamada no interfone, na manhã de sábado sonolento, porque perdeu a chave.
  Não é megalomaníaco, é muito, muito humilde. Toma café em copo americano, soprando os goles, encostado na soleira da porta velha de madeira, com pequenos montes de poeira que sentenciam a praga de cupins. É de andar por entre o povo, nas ruas, é habituè das aglomerações. 
 
  Não tem idade definida, uma energia de juventude ou paciência de maturidade; estereótipos que construímos dele. Não tem nacionalidade, mas ao chegar, nunca parece um estrangeiro, mas se ficar, uma hora ou outra haverá muitos estranhamentos, inclusive o idioma, que logo parecerá uma barreira.
  Não é loiro ou moreno, careca ou cabeludo, rei ou ladrão. Não é polícia ou capitão, cheiroso ou fedorento, mas tudo em um, sem nunca acertar ao pular a corda.
  Não é afável sempre, mas não causa dor nunca. Não salva nada, mas não afoga coisa alguma. Dá asas, dá vento, só não dá a altura.   

  O amor, ao que parece, é tudo aquilo que eu falei que não era e quase nada do eu queria que fosse. É bem pouca fantasia e muita confiança; não nele em si ou no que ele traz consigo, mas no que ele não pode e, mesmo assim, é ardorosamente desejado. 
  O amor não é nada daquilo que eu jurei que era e nem por isso pareço enganada.
 



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