quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

É inútil acreditar no próprio coração

   Como é inútil limpar o apartamento antes de terminar a pintura das paredes; se vai lixar então, não tem o porquê dessa vassoura, pano molhado, espanar os móveis cobertos pelos lençóis empoeirados. 
  É inútil manter uma piscina limpa, se ninguém na casa se interessa mais pela água, nenhum par de olhos a contemplam de longe, nenhum pé testa a temperatura das suas bordas, nenhum corpo experimenta o mergulho.
  É inútil uma cidade em que não se pode flanar pelas suas avenidas nas noites de dezembro, se não chove. Uma cidade que não convida os seus moradores aos pequenos furtos de flores do seu parque central. É inútil uma rua que tenha o nome de um homem cujas mãos estão repletas de sangue e destruição.

  É infrutífero tentar distrair um pensamento; pensar em não pensar só traz o objeto ainda mais forte à memória. 
  Querer esquecer uma canção, porque ela faz lembrar alguém é tempo desperdiçado com aquilo que não é possível, porque as músicas ecoam mais fortes do que qualquer mágoa. É preciso aprender que as canções ultrapassam as medidas das dores rememoradas; é bom admiti-las apesar de, e voltar a batucá-las mesmo se o perdão não vier.

  É loucura achar que vai ser diferente, se as pessoas são as mesmas e só apontam as rachaduras da parede alheia. Nos acostumamos com elas, mas não deixamos de apontá-las em dias frios:
  - É daí então que vem todo este vento!
  Não tem lucidez alguma em querer chegar do outro lado, insistindo em caminhos que nunca levaram até lá. Saber da areia movediça não a torna mais firme.
  É loucura a insistência oca. Permanecer, para sempre, atada à margem porque já reconhece a própria imagem no espelho d'água. É inútil ser Narciso, porque sempre acaba engolido pela água. Ser afogada pela única imagem que se tem de si. 

  É fracassado qualquer desespero em ser amada, admirada e querida sempre. Porque só as personagens efêmeras detém essa proeza. Durar é decepcionar; conhecer é desiludir-se. Só o transitório permanece intocado.
  É fracassado não ser humana, querer não errar, querer a perfeição de estar e ser. Preferir a mentira intacta ao real lambuzado, amassado, cansado de amor e de amar. Não ocultar as falhas, as manchas, as rugas é libertador e amoroso. Quem engana com o mármore só ama a si.

  É malogrado querer renascer das cinzas antes de passar pelo fogo. Quebrar-se não é incendiar-se. Estar em pedaços não é o mesmo que passar pelas labaredas alaranjadas e escarlates de intenso calor. Só renasce quem não tem um pedaço a recolher do chão.
  É inútil achar que já queimou nas chamas quem teve uma avó bruxa, a experiência não é herdada. Só a história é. 
  Quem passa pelo fogo e não sucumbe às perdas, merece asas. Só renasce Fênix, quem experimentou arder até o último sentimento ofertado. Quem ultrapassa a combustão, merece ver o mundo de cima.
 
  É desperdício economizar dinheiro e não ter tempo, economizar tempo e não ter algo ou alguém a quem dedicá-lo. É tempo perdido planejar o amanhã e esquecer que só o hoje é tangível; querer estar em outro lugar, antes de ter estado no que pisa agora. Bom é ter olhos de sonhos no presente, bom é estar presente.
  É perda de tempo querer reconstruir uma casa, pessoa, sentimento ou relação só com as bases da própria construção; sem entender que as estruturas são múltiplas, assim como são diversos os terrenos, suas  inclinações e níveis; e as ferramentas não podem nada sozinhas. Nem trocar os pisos de uma casa é tão simples, sem se atentar às suas especificidades. 
- Tem criança? Tem cachorro? Costumam lavar muito o chão? O terreno é úmido? Prefere piso frio ou madeira? Pode gastar quanto? Em quanto tempo tem que estar pronto?

  É inútil acreditar no próprio coração, quando ele já deu provas seguidas de que se engana ou permite-se aos enganos. É arriscado deixar para ele as decisões mais relevantes de uma vida, sabendo o quão inconsequentes podem ser as suas escolhas. 
  É inútil acatar os desejos de um órgão desobediente, negligente, sonhador e muito iludido. Mas é inútil também tentar calar a voz de quem sempre está disposto a um soneto ou grito. É inútil acreditar, como também é inútil o ceticismo; que não nos salva de nada. É inútil sonhar com asas depois das cinzas, se nunca passamos pelo fogo.



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