sábado, 26 de dezembro de 2020

Nada que desse certo para nós

  Nada aqui deu certo para nós. Minha comida não é boa e eu não gosto de cozinhar ainda. O bolo não cresce, o arroz nunca fica solto e branco, não tenho força nos punhos para sovar massa de pão, o macarrão é insosso e eu não sei usar o alho na quantidade certa.   
  Não temos paciência para cuidar de uma horta, por isso todas as tentativas fracassaram. As hortaliças e os dois ou três legumes duram alguns meses, ficamos orgulhosos, mas voltamos a negligenciar e tudo morre.   
  Nunca instalamos a rede, que ganhamos de casamento, na nossa varanda, e fizemos planos para tantos verões nela.

  Você não se tornou mais gentil depois do almejado diploma. Eu não voltei a estudar depois da sua graduação. Nunca chegamos ao final de um quebra-cabeças de mil peças e desistimos dos entretenimentos em dupla. Nos tornamos, em grande parte, sua mãe e seu pai; mas ao menos, não fomos minha mãe e meu pai, senão o meu destino era  mais curto e bem mais doloroso. 
  Nossos filhos foram luzes muito mais difíceis  na chegada do que me avisaram e você pouco ou nada assistiu aos começos. Depois eles não foram à faculdade, não se tornaram muito amorosos ou bem sucedidos. E aquele ditado do fruto que não cai longe do pé, me atormenta algumas noites.

  Não nos tornamos ricos, não construímos casa na praia, não tivemos aposentadoria com segurança e sossego, não viajamos para a Europa nem dirigimos carros de luxo.
  Também não nos tornamos célebres; nem June e Johnny, Beauvoir e Sartre, Bonnie e Clyde, Maria Bonita e Lampião, Zélia Gattai e Jorge Amado; não rompemos, não chocamos, não criamos, não roubamos, tampouco nossa história comoveu uma alma qualquer. Somos invisíveis. Pior, nossos fracassos são vistos a qualquer tempo, por quem quiser.
  Não cumprimos com as nossas promessas amorosas, religiosas, mas, socialmente, estivemos sempre à risca. Não ouvimos voz de prisão, mas acho que não conhecemos liberdade. Não sei se sente o mesmo, mas há dias em que acordo e sinto que não faço absolutamente nada por escolha, só sigo. E olho para você fazendo o mesmo. 

   Não inventamos outro mundo dentro deste, como imaginávamos, e acho que mesmo neste vivemos como deu e deixamos de sonhá-lo. Não que não sonhamos mais, mas são sonhos muito domésticos: comprar, enviar, reformar, reencontrar, viajar, parecer e ter. Se sonhássemos um outro mundo talvez os verbos seriam diferentes: desenhar, criar, defender, levantar e libertar -  nós mesmos e os outros.
  Não fomos linguistas competentes desse idioma que usamos desde o início; assim, perdemos a comunicação e nunca a retomamos com cuidado. Não nos entendemos para além dos gestos já automatizados; se saímos do que conhecemos, logo nos estranhamos. Por isso essa guerra fria; silenciosa, lenta e mortífera.

  Eu não me apaixonei por outra pessoa e acho que nem pelo novo você eu me encantei por alguns dias. Você também não me pareceu se iluminar, de novo, por paixão alguma; o que é muito triste para ambos. 
   Talvez tenhamos sido só dois riscos brilhantes no céu antes de uma chuva. Caímos e o fenômeno nunca mais se repetiu. Será que teríamos controle sobre isso? Podíamos inventar novas tempestades? Agora eu acho que sim. Antes, eu não pensava nisto.

  Não desejamos que durasse a infância dos nossos filhos, as viagens à praia, os dias em que ficávamos sozinhos, quando as crianças brincavam na casa dos amigos. Porque estávamos sempre cansados e preocupados com as dívidas, queríamos que eles crescessem e que acabassem logo às exaustivas idas à praia. 
  Hoje eu sinto falta dos castelos na areia e das centenas de perguntas inusitadas, enquanto voltávamos para casa. Nossos filhos eram tão espertos àquela altura e nunca dissemos isso a eles. Você também sente que podíamos ter sido melhores? E que se fossemos, eles também seriam? 
  Sinto falta das paredes rabiscadas, dos desenhos no dia das mães e, principalmente, de ter feito uma maternidade muito diferente daquela que puderam me dar. Mas parece que o fruto não cai longe do pé, não é mesmo? Fiquei tão cansada quanto a minha mãe. Talvez todas fiquem.

  No entanto, não há outro lugar no mundo que eu gostaria de estar agora. Todos os nossos fracassos estiveram sempre divididos, numa balança em equilíbrio constante. Ajudá-lo me fez ter forças para estar de pé, algumas vezes, e alcançar a sua mão, em dias difíceis para mim, me fez sentir que eu não estava sozinha. 
  Vê-lo acordando todos os dias otimista, embora cansado, fazendo piada das próprias mazelas, ainda que muito diferente das minhas ilusões, me fez entendê-lo  falível e absolutamente vulnerável, como eu também sou. E foi por isso que eu nunca precisei varrer o pó para debaixo do tapete. O pó também sempre foi a nossa casa. Eu queria ter feito mais e gostaria que você também quisesse ter feito. Só não sei se saberemos ter essa conversa algum dia. Por enquanto,  só me passa a manteiga e eu gosto muito de você e dessa vida em que nada deu certo para nós.




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