domingo, 3 de janeiro de 2021

Já que não vamos salvar nada, que acenemos de volta

   Nem ano nem mês, semana, tampouco este dia ou uma parte dele; nenhum terá salvação. Não depois do instante passado. O que chamamos de redenção das coisas são só compensações; nunca salvação de fato.
   Depois da fresta aberta não existe parede inteira,  de novo, o que é possível é cimento, massa e precisão do pedreiro em tampar rachaduras. Prato quebrado é dúzia de onze; os cacos recolhidos são descartados; meses depois e um pedaço ainda mora no pé de trás do fogão, sem se salvar, só um caco.
 
  Redenção é depois, mas o depois é tarde demais para evitar a quebra, a fissura, a ferida, as partes perdidas.
  Salvar do afogamento, mas nunca se curar do susto; resgatar do incêndio, mas ter na pele as cicatrizes e na memória, a visão do fogo irremediável. Libertar do cárcere, mas ainda ter pesadelos com as grades. O depois é sempre o instante de mudança; não saímos inteiros.

  Já que não podemos salvar nossas infâncias, que embora vivam dentro, mas em um tempo passado, que salvemos outras. 
  Empurremos um balanço, seguremos uma mão para atravessar a rua ou um medo, sorrimos ou acenemos de volta, tomemos um chá em xícara de plástico vazia e menor que a palma da mão. Repitamos a leitura de um livro em que o jacaré não se cura de uma dor de dente por páginas a fio. Enfeitemos outros natais, com embrulhos que a nossa infância não conheceu. Não custa fazer pelas outras o que não podemos fazer mais pelas nossas.

  Já que não há amor a ser salvo, porque quando escapam não voltam mesmo. Podemos até nos enganar com um similar, uma cópia, um remendo, mas o que foi já não volta. Que nos salvemos então da descrença de um novo, do cinismo, da carência e dos embustes que aceitamos ou entregamos.
 Já que não há redenção possível para a perda, que aprendamos a seguir sem a covardia dos traumas passados; que as cicatrizes não frequentem novas histórias. Que as novas páginas sejam escritas sem rasuras.

  E que não podemos nos salvar da tristeza nem da chuva; que nos recolhamos sem disfarces. A chuva fina, lá fora, é inevitável no verão daqui, a tristeza também é um evento a ser aceito. Passados ambos os fenômenos, colocar o rosto ao sol e sorrir de novo faz parte do ciclo interminável de altitudes.
  Já que não podemos nos salvar da chuva e da tristeza, que o café na xícara predileta, que a música de letra conhecida, que o filme já assistido, a voz segura ao telefone e o poema na página marcada sejam bons abrigos.  

   Já que não podemos nos salvar da apatia; que ao menos, reconheçamos os dias em que ela não vem ou quem - e sabemos quem são - nos afasta dela um pouco. Quem a dribla como um atacante latino-americano, com passes, paradinhas e mágica. Passou pela nossa apatia, fez uma curva com o corpo,  deixo-a caída no chão e veio ao encontro do gol, daquele único do qual precisávamos. 
  Já que não há redenção para o tédio, que passemos por ele com algum acessório que brilhe: um batom, um par de brincos, uma pedra no anel, uma paixão que espelhe nos olhos.

  E que não podemos salvar este mundo da miséria; em suas várias dimensões, que nunca esqueçamos que ela existe e que também somos responsáveis por produzi-la ou evitá-la. E que se justifica sim a falta de paz, quando não há o mínimo de equilíbrio.
  Já que não vamos salvar nada, que não enterremos em nós, aquilo que pode iluminar um outro.  Acenar de volta é um bom começo.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, todas as águas de Janeiro deste 21

Amanda

Que fundo musical lindo, hem!
"Já que não vamos salvar nada, que não enterremos em nós, aquilo que pode iluminar um outro." - Ah!!! Amanda, as promessas de amor!!!! Nunca são cumpridas, sequer compridas.

Mas o texto de uma leveza salutar. Tudo muito bom!

Feliz 21!!!!!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 14 de janeiro de 2021

Querido Paulo,

que bom que veio aqui. Vezenquando visito a Pitangueira, mas faço a indelicadeza de nem deixar um olá. Os dias já estão corridos ou ainda corridos, não sei bem. Mas seguimos como podemos e com as crenças de antes - às vezes depois de espatifadas e recriadas - e outras novas, porque é bom também aspirar novas paisagens. Sim...o amor ainda vai nos salvar...sempre acho isso. E também acho que sou ingênua em achar isso.

Abraços,
Amanda Machado