domingo, 17 de janeiro de 2021

Os dois pedidos da segunda-feira: que eu não me esqueça e que eu me lembre

  Lavo o último prato e antes de colocá-lo no escorredor, ela o pega da minha mão e o seca. Faz esse
mesmo gesto há anos, mas parece que hoje é diferente; é o gesto do qual eu quero me lembrar por muitos anos mais.
 É final de noite e o espaguete com atum foi a nossa comemoração. Eu tive vinho e ela preferiu não. É segunda-feira e nada parecia especial antes do e-mail. Na primeira linha eu já sabia o que era e gritei, mas o abafei antes que saísse completamente agudo para ter certeza de que era mesmo a boa notícia. Essa que nem é tão nova e que embora me encha de contentamento, não modificará a rotina dos dias, presa entre tabelas. listas e o vazio de um ideal que a cada dia parece mais distante de realização. Ainda assim é a mesma alegria pousada, que só me aproximo com passos leves para não espantá-la.

  Conto para eles e ficam felizes, mais, se esforçam para que eu saiba que estão felizes. E esse desconcerto é terno, familiar e quase ancestral; estou ligada à este mundo por esse meio constrangimento do sentir e querer que saibam sobre o sentimento. 
  Gosto de partilhar assim, com esses outros quatro pés cuidadosos se aproximando da alegria breve. Essa mesma que já chegou  outras vezes, morou muito tempo dentro, mas quase sempre é encoberta pelo locatário. Nunca cobro aluguel, mas também não coloco seu nome na caixa das correspondências.
 
  Então a mulher se levanta e cozinha, porque o amor dela é desses que refoga, frita, coloca alho, azeite e, finalmente, sacia. É uma amor na ação. Não sabe amar só em descanso. Precisa ter gesto, ter planejamento, ter finalidade numa mesa posta.
 Não pergunta se queremos, o que queremos, só oferece depois de pronto. Devia ser assim na vida dela que eu não conheci; talvez a mãe dela também oferecesse afeto no fogão de quatro bocas. Sirvo o vinho, ela recusa - porque é segunda-feira -  eu, então, tomo as duas taças.

  Agora somos só nós duas, na sala, com os pratos no colo, comendo o espaguete da segunda. Falamos desta alegria e das outras, uma pequena coleção em cima do aparador. Comemos e enquanto me viro para pegar a taça, sinto os olhos de amor dela na minha nuca. Talvez eu os sinta sempre, mesmo quando não estamos tão próximas e, algumas vezes, acho mesmo que eles é que me fizeram segura para alguma luta.
  Ela leva mais uma garfada à boca e eu olho para ela em todos os tempos, não é uma imagem só para hoje; é digna de nunca ir embora. Ela termina o espaguete - no meu prato ainda tem bastante - coloca o próprio prato no aparador e pega um dos livros.
- Esse é lindo. Todos são, mas esse...esse tem um texto que eu sei para quem escreveu.
  Ela acha que está sendo indiscreta, mas eu confirmo:
- Sim, foi para ela que eu escrevi. E ela sempre soube.
  Ela folheia o pequeno exemplar e busca o texto ao qual se referiu. Está sem óculos e pede ajuda. À esta altura meu prato já está vazio, pego o livro das mãos dela, encontro o texto e pergunto se ela quer que eu o leia. Ela afirma com a cabeça e eu começo.

  Sei ao que ela se refere; é uma dor partilhada, embora talvez lateje em lugares e intensidades diferentes em cada uma; disso nunca saberemos ao certo. 
  Já chegava na quarta ou quinta linha e levantei um pouco a cabeça para ver se ela ainda acompanhava, tinha os olhos marejados e não parecia estar triste, talvez um pouco melancólica, com saudades, mas não infeliz. E isto também me emocionou. Leio mais algumas linhas e a voz começa a embargar, da metade para frente a voz não falha, mas as minhas lágrimas se assomam como as dela. Ela diz que há muito não chorava assim e eu digo que choro todos os dias, mas que com o vinho isso fica ainda mais fácil. Nos compreendemos iguais e diametralmente opostas: eu chorona e ela quase nunca.

  Não choramos como mãe e filha nem autora e leitora ou leitora e ouvinte. Choramos completas de nós; sem vazio que nos assuste, vivendo o imperecível de uma noite que eu não daria a mais ninguém.
  Choramos porque ela a vida toda engoliu muitas lágrimas e, talvez por isso, tenha projetado em mim essa pessoa que se derrete sempre. 
  Choramos pela despedida e pelo amor que ousamos magoar um dia. Choramos porque eu já me perdoei e ela porque não consegue com tanta facilidade. Choramos porque amamos muito alguém que não partilha do espaguete nem da alegria frágil que pousou na nossa janela. Choramos porque nos temos hoje e mesmo às segundas que não tiverem o espaguete, estaremos alimentadas por essa memória de hoje. Talvez seja minha só essa memória, mas queria muito que também fosse dela.
 
  Choramos porque o que eu lia era meu, mas era muito mais dela. Choramos porque o vinho me deixa assim e a barragem dela sempre ameaça desmoronar; choramos porque o que eu leio é a história de alguém a quem ela ama e, por isso comove muito mais do que a novela que deixamos de assistir.  Choramos porque isso era tudo o que tínhamos para uma noite de segunda-feira, que eu dei inteiramente à ela. 
  Antes de irmos à cozinha para lavar os pratos, eu gracejo:
- Sabe que é um privilégio ter uma autora na sua sala lendo a própria obra, não sabe? 
  Ela diz que sim, mas eu sei que não. O privilégio é todo meu. 
  Ainda tem um resto de vinho no fundo da taça e eu a levanto e faço dois  pedidos: que eu não me esqueça dessa segunda-feira e que eu não permita que a partida de um amor seja tão dolorosa de novo; mesmo que caiba numa história. 
 


4 comentários:

Keila Lima disse...

É tão bom chorar junto com a mãe. A primeira vez que chorei junto com a minha mãe foi quando me descobri mulher e mais humana. Obrigada pelo texto, Amanda

Amanda Machado disse...

Ahhh...Keila...é bom sim. É uma conexão poderosa, o choro. Eu quem sou grata pela sua sensível leitura. Beijos

Paulo Abreu disse...

Minas ainda que tardia, 19 jan 21

Amanda!!!

A sororidade é a tônica, a força que reluz e afaga. Texto feito candura materna.

um abraço!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 19 de janeiro de 2021 ( o ano do "apesar de"...)

Gracias Paulo, pela sempre ilustríssima e festiva visita.
Abraços!