quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Então não se preocupe mais quando for buscar os pães


  Compramos pão; alguns menos do que há anos atrás. Já não somos mais cinco na casa, já não comemos mais de um pão à tarde e as visitas não podem vir há quase dez meses. Mas compramos pão e continuamos a tomar café da tarde juntos. O da manhã quase nunca, porque despertamos em tempos diferentes e as nossas rotinas se desencontram mais a cada doze meses.
  Embora mais modesto, menos frequentado e quase imperceptível, o ritual dos pães permanece. Hoje compramos juntos; não teve encomenda, não teve a oferta de trazer uma casadinha, sonho ou um pedaço de rocambole de doce de leite, fomos juntos comprar pão de sal; o lacônico: um para cada. 

  Embrulhados os pães, acertada a dívida com a caixa sorridente da padaria, sincronizamos os nossos passos - naturalmente, sem esforço de apreensão de ritmo - e partimos rumo ao coador reutilizável, ao qual ele ainda não se adaptou,um litro de água quase fervente, três colheres de café e três de açúcar - na conta dele, porque na minha, o  açúcar é dispensável.
  Enquanto subimos a rua, noto um desassossego novo, a mão que balança mais, os olhos que permanecem menos em mim enquanto falo. Pode ser algo importante, pode não ser nada. Mas eu sempre vou querer saber:
  - Então, o que o incomoda? Qual é a preocupação?
   Ele podia desviar do assunto, podia inventar algum motivo ou simplesmente permanecer em silêncio, mas não é dele nenhuma das opções anteriores; ele é direto, não borda palavras, não se esconde em vidros foscos. 
- Você. A minha preocupação é você. 
  Não me atordoa a imprevisibilidade da resposta, mas me surpreende, me desconserta um pouco. Ele diz que se preocupa comigo e não sei se debocha ou é seriedade; acho que quase sempre esses dois fios se entrelaçam nas palavras dele.
 - É porque não ganho dinheiro, né? Isso também me preocupa.
  Acho que ele sorri, porque embora não veja os seus lábios, porque estão cobertos pela máscara, seus olhos brilham e espremidos quase se fecham.
 - Não. É porque quero que seja feliz.

  Ainda bem que não carrego os pães, essa era a hora de eu soltar a sacola e abraçá-lo tão fortemente a ponto de perdermos os pães e o fôlego para a subida. Mas não consigo dizer nada, tampouco um gesto só que carregue o que eu sinto depois do que ele diz.
  É um jeito tão manso, esse dele de dizer as coisas, tão cotidiano, tão comezinho, mas ao mesmo tempo tão majestoso, que eu não consigo estar à altura. Porque ele desconfia, mas não me pressiona. Ele sabe, mas não me desafia. Ele vê e não aponta; ele não entende, mas acolhe. 
  Ele compra os pães, faz o café e serve esse amor genuíno em xícara barata, na qual eu tomo os cafés de todos os dias.

  Sou um gato no muro e ele não me afugenta nem tenta me seduzir para descer. Ele se acostumou com o felino em mim e eu me habituei a cercá-lo, mesmo quando quero ser livre. 
  Ele me aponta, quando eu chego ao seu quintal, mas não diz que é meu dono ou me dá um nome. Eu o visito e o amo sem submissão. Sou um gato no muro e estou sempre muito próxima da queda; ele é o homem imponente na porta e parece estar sempre torcendo para que eu não caia ou que, ao menos, não me machuque tanto quando isso acontecer.

  Eu tenho os mesmos olhos dele, as mesmas carência absurda e vontade de andar só, esta última que contradiz a nossa necessidade de troca. Os olhos verdes dele, o adunco do nariz que eu rejeitei, a audição cada vez menos apurada e a voz macia do amor que só me liberta e quer assistir a minha coragem e destreza de subir nos muros, cair deles e não desistir de continuar noutros. 
 - Mas que preocupação complicada é essa sua!
  É tudo o que a minha surpresa permite que eu diga, assim, sem preparo.

  Damos mais alguns passos e acho que sempre podemos chegar ainda mais próximos de nós. Ele abre o portão e eu o seguro com um dos pés para ele passar. Eu estendo a toalha na mesa, ele coloca água na leiteira. Desembrulho os pães, tiro a manteiga da geladeira e lá fora o gato amarelo me encara. 
- Olha, eu não quero mais que se preocupe, não é possível ser infeliz com esse café que você prepara todas as tardes.
  Mas eu não disse. Porque é possível sim, conhecer o amor e ainda sempre procurá-lo.
 
  Então não se preocupe mais quando for buscar os pães, eu sou absolutamente feliz alguns dias e em quase todos os outros em que eu não estou, eu me esforço por você e também por mim; porque me lembro do que você me oferece na xícara. 
  Os pães, a risada dele e esse jeito discreto e completamente grandioso de dizer que sou amada. Ele faz o café mais doce da cidade e sabe amar como eu não sei se saberei um dia. O café é quente, o pão é frio, mas esse amor é uma eternidade morna e profundamente feliz.




2 comentários:

Bel disse...

coisa mar linda

Amanda Machado disse...

Ahnnn...gracias, Clemê!