sábado, 20 de março de 2021

E se o mundo acaba, eu ainda não sei falar sobre algumas coisas sem chorar

  O mundo vai acabar. Dizem. De doença, guerra ou cansaço; o mundo acabará. Não sou eu quem escrevo isso sozinha, agora. Outros, muitos outros já disseram bem antes. O mundo acaba algum dia e em alguns dias parece que está mais próximo o seu fim. 
  Talvez num estrondo, depois de uma colisão entre duas ideias, planetas, automóveis, copos ou existências dissidentes. Num barulho ensurdecedor de alarmes, sirenes ou num grito, de quem ainda nunca ouvimos a voz. Ou, quem sabe, acabe num silêncio assim doído, quando a resposta não chega, porque não quer magoar, mas já está posta em alguma mesa. Absoluta ausência de som, nem um suspiro, oração ou monossílabo. O mundo acaba no barulho absurdo ou no silêncio profundo; mas acaba o mundo.

  O mundo, talvez acabe e não temos notícias, instruções, algum vídeo que nos ensine a deixá-lo acabar sem lutar, sem chorar, sem lamentar o que ficará perdido, depois que o mundo que conhecemos for definitivamente banido. Se está próximo o fim eu não sei, às vezes acho que sim; tantas outras tenho esperança de que não. Mas o mundo acaba e eu ainda não sei falar sobre algumas coisas sem chorar. Meu "até nunca mais" sempre fica um pouco preso na garganta, como se o nunca forçasse demais as minhas entranhas; o "não esperava" só sairá com uma lágrima que facilite a sua passagem, mas é possível que eu esperasse sim, só não queria; nem de amar eu sei falar mais sem que alguma umidade se deposite nos meus olhos.

  O mundo acaba numa onda gigantesca, num tsunami, seguido por um dilúvio sem arca. O mundo acaba sob a água; e tudo o que temos agora - casa, conhecimento, notas de real - ficará submerso em correntes profundas, eternamente. Um curso de água feroz arrastará cercas, fronteiras e portões; carregará histórias, perdões e planos; afogará desistências, jardins e celebrações. A água apagará o que desejávamos ter para sempre e não alcançará o que planejávamos esquecer. O mundo acaba dissolvido, nunca mais nenhuma sede, mas também nenhum mergulho.
  Ou talvez o mundo acabe de aridez. Um dia a chuva atrasa, noutro ela vem muito discreta e alguns dias depois nem esperamos mais por precipitação no horizonte. Num deserto completo, caminhando sob o sol por vinte um dias antes do fim, o mundo acaba numa distopia ou num cotidiano bem ordinário, com ralo entupido,grampos no cabelo e camiseta furada. O mundo acaba e nem estaremos vestidos para o fim.

  O mundo acaba em um bom-dia escrito no quadro verde, na letra redonda da professora de primeiros anos. Mal sabe ela que depois do ponto final, o mundo acabará. O mundo acaba na chamada, antes do seu nome e nem presente vai dizer como despedida. O fim do mundo chegará antes do recreio, sem lanche compartilhado, sem troca de olhares com um primeiro encantamento, sem meninos correndo atrás da bola entre quatro linhas, sem biscoito recheado. O mundo acaba antes de muitas infâncias crescerem; acaba quando a maturidade instalada ainda parece promessa. O mundo acaba e é doloroso não nos despedirmos, agradecer pelo que foi e lamentar pelo que podia ainda ser. 
  Ou, quem sabe, o mundo acabará na sisudez de um veredicto jurídico: o mundo absolvido da acusação de nunca ser como o imaginávamos ou culpado por nos deixar imaginar demais.

  O mundo acaba e não vai ter triplex, crime de responsabilidade fiscal, não vai ter grande acordo nacional com o supremo e tudo, que invente um golpe para destituir o término. O dia do fim do mundo não poderá ser preso, torturado, acusado de traição à pátria, porque não vai ter fascismo que proíba o fim de chegar.
  O fim do mundo talvez seja capitalista, vamos fotografar o desastre, na saída do trabalho, se conseguirmos sacar a câmera no tempo certo, mas não teremos a decência de olharmos para o medo dos outros. Não teremos mais  quem admire as nossas narrativas e depois lave os pratos.

  O mundo é uma tarde de domingo para a qual planejamos grandes coisas - ou muitas pequenas; terminar um trabalho e mais duas ou três diversões. Mas ficamos deitadas na cama, inertes, olhando para o teto, sem nem conseguirmos nos despir da camisola. Na segunda-feira nos sentiremos culpadas pelo domingo de desobediência. 
  O mundo é o domingo, do qual reclamamos, mas continuamos a cultivar as sereníssimas memórias de muitos outros passados.  O fim do mundo será mais um domingo de camisola e nenhuma produtividade que interesse. 

  O mundo de hoje acaba hoje e ninguém espera que seja uma despedida definitiva. Embora seja. O mundo que achamos conhecer acaba todos os dias e se não choramos é porque nos alimentamos de esperança no dia seguinte; sem saber que o outro já partiu..  
  O mundo acaba e eu ainda não sei fazer contas com trocados, alimentar pássaros na gaiola, ser produtiva aos domingos e  falar sobre  algumas coisas sem chorar.




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