sábado, 27 de março de 2021

Uma mulher não deve vacilar

  Antes das seis ela já ligava o rádio. E durante o dia todo ele se estabelecia como a sua companhia mais
regular. Já conhecíamos a programação diária, tínhamos decorado os jingles de cada programa e patrocinador, os bordões dos locutores e os seus nomes compostos; cada voz do rádio era uma pessoa com quem estabelecíamos algum tipo de relação. Eu, por exemplo, não gostava de um quadro de fofocas porque achava a apresentadora preconceituosa demais, era ela ser anunciada e eu imediatamente reclamava.. Minha mãe gostava, mas concordava comigo sobre esse aspecto. Exatamente às seis começava um programa que durava até o meio-dia, nós saíamos para escola enquanto a música de abertura tocava. Todos os dias, durante anos, enquanto minha mãe colocava a mochila nas minhas costas e me dava um beijo de despedida, o verso ecoava da cozinha: "Lavar roupa todo dia, que agonia...". Minha mãe fechava a porta do apartamento e seguíamos os três para as nossas funções fora da casa. Ela sempre ficou.

  Lavar roupa era também o que ela fazia, não só. Mas quando eu a imaginava em casa, achava sempre que lavava roupas, enquanto estávamos fora. A canção no rádio, de alguma forma, me ajudou a construir essa imagem da minha mãe, ela lavava roupas e era agoniada. Não ficava triste por isso, mas gostava mais dos finais de semana, em que a programação da rádio era outra e não ouvíamos a agonia de alguém que precisava lavar roupas. Eu achava que a minha mãe descansava nesses dias, embora não fosse bem verdade.

  Minha mãe ficava, minha irmã saía um pouco antes de nós, para uma escola mais distante, enquanto eu, meu pai e meu irmão embarcávamos no ônibus da empresa em que meu pai trabalhava; pegávamos uma carona autorizada até a nossa escola. Chegávamos mais cedo, por causa do horário do meu pai, mas íamos mais confortáveis e economizávamos uma passagem de ônibus - isso fazia muita diferença no orçamento familiar, certamente.
  Depois que eu me acomodava no ônibus, o primeiro verso da canção, ouvida tantas vezes, parecia me deixar um pouco melancólica. Sentia o cheiro do sabão em pó, o frescor do vento batendo nas roupas no varal,  lembrava das mãos geladas da minha mãe, arrumando o meu cabelo e ainda não sabia se podia ser diferente. Eu não pensava nessa música há anos, até identificá-la há alguns dias: era ela que eu ouvia quase todas as manhãs.
  E então eu reconheci seus outros versos, entre eles: "Uma mulher não pode vacilar".
 
  Todos os dias eu me despedia da minha mãe, uma agoniada lavadeira, que quando fechava a porta ouvia que uma mulher não podia vacilar. Talvez ela nunca tenha pensado na canção, na letra, mas sobre  vacilar, acho que todas nós pensamos.
  Eu subia no ônibus e deixava uma segunda parte da canção,  a mais dura, para minha mãe; que sozinha, ouviu por anos que não podia vacilar. E que talvez, também por isso, tentava ensinar a mim e a minha irmã que não podíamos também. Foi ela quem, didaticamente, numa tarde me explicou a proibição do meu pai, que não deixava que eu usasse camisetas curtas quando fosse à escola, mesmo em dias em que o uniforme fosse dispensável:
- É um ônibus de trabalhadores. Só tem homem.
  E eu, até a vida adulta, não usei roupas curtas fora de casa. Nada. Precaução. Se nos próprios colegas meu pai não confiava, como eu poderia, em desconhecidos?

  Quando ouço a canção, a imagem da minha mãe discreta, mas nunca apagada volta à minha memória. Minha mãe falante dentro de casa e muito calada fora dela, minha mãe brava, assertiva com a porta fechada e passiva depois que a abriam. Os sapatos de salto que ela quase nunca usava e eu experimentava diariamente, o batom vermelho chinês que ela encomendou de uma revista e nunca usou - me falta coragem - mas que eu colecionei uma centena deles durante a vida; meu favorito sempre. Ela linda, vestida com um cardigã de veludo, com duas folhas bordadas, uma dourada e outra fosca bege. Ela elegantíssima, com inverno e outono no peito - era assim que eu pensava sobre as duas folhas, a fosca era o inverno, a brilhante o outono. Minha mãe que usava sapatilhas para que nunca desequilibrasse, minha mãe com batom cor de boca para que ninguém a abordasse com ousadia. Minha mãe que não vacilava.

 Agora, coloco a música no modo repeat e a ouço exaustivamente. Como eu podia não enxergar a solidão da minha mãe? Como eu pude deixá-la só, pensando em nunca vacilar? Estamos todas um pouco sós. Procuro alguma lembrança da minha mãe, cujos vestígios recordem algum tipo de vacilo. Um batom borrado, uma noite bêbada, um palavrão, uma briga com o meu pai, uma mentira com a qual eu tenha sido conivente, como uma compra escondida, um valor superfaturado, mas nada.  
  Já afundei algumas vezes, a maioria delas ninguém viu. Não dei um grito, afundei calada e me salvei silenciosa também em um colete que eu mesma fiz, enchi e carreguei, discreta, por causa desse pudor da segunda parte da canção,  a qual eu nunca tinha me atentado, mas está em mim também. Talvez eu a tenha menos do que ela, mas ainda tenho, sem querer ter. E depois do afogamento, só abri a porta quando já estava seca e com a roupa trocada.
 
  Tenho vontade de me desculpar com ela, confessar que durante muito tempo eu sentia uma melancolia profunda quando nos despedíamos, mas que talvez fosse porque eu não queria repetir a mesma agonia diária dela, como na música.
  A letra me alcança de novo, fico triste, mas eu ainda não sei dizer para ela o que eu queria dizer. Tomamos café, o meu é puro e sem açúcar, o dela tem um pouco de leite e está adoçado. Olho por cima do arranjo com orquídeas sobre a mesa e sem explicação nenhuma antes, eu lanço:
  - Mãe, uma mulher não deve vacilar?
  Ela não me pergunta nada. Não estranha, não vacila:
 - É que o eles dizem.
   Ela diz e depois leva a xícara à boca. De novo, ela me ensina, de novo ela me aponta um mundo. Eles dizem. São eles. Ela não mais.
 



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