domingo, 4 de abril de 2021

O outro lado já é este

  Isso não é uma ponte. Não é mais a passagem de um lugar ao outro como pensávamos. O outro lado já é este. 
  Um ano depois, e os oitenta metros quadrados do apartamento não se alargaram, algumas plantas morreram por excesso de umidade ou substrato, que eu comprei pela internet, o fermento biológico para pão joguei fora ontem, porque perdeu a validade e eu não estou fluente em qualquer outro idioma. Aliás, tenho tido dificuldades com a própria língua materna. 
  Um ano depois, e a travessia é esta casa; não tem página seguinte, estamos presos a uma mesma sequência de letras há doze meses. A porta de um lado foi aberta, entramos esperançosos, mesmo que a paisagem pela janela fosse árida, mas não encontramos a outra porta, continuamos no deserto.

  Há areia por todos os lados, mas nos acostumamos ao ar poeirento, ao calor intenso durante o dia e às noites de vento cortante, com o consolo de que tudo era passagem. Cobrir o máximo de pele para proteger do sol e do vento nunca foi suficiente para não sentirmos; calor, frio, medo e esperança.
  A promessa do oásis não se cumpre, embora se renove - a cada dia mais fosca. O deserto continua areia e solidão, um tempo de espera ao qual nunca alcançamos o topo. Mas também se transmuta em aprendizado, tédio, memórias, frustrações, novas habilidades, raiva, paciência e grito. O deserto é areia infinita que nem sempre é só areia.
 
  Esse tempo não é uma ponte para outro, esse é um tempo completo possível. O deserto é o nosso cotidiano, sem os filhos que vão para escola, sem as trocas de olhares no balcão do bar, sem os beijos apaixonados do amante erradio. O deserto do qual não nos libertamos em poucas semanas, como imaginávamos nos dois primeiros passos, não tem quilômetros rodados, mas nos afasta a cada dia mais do que éramos quando alguém nos abriu essa porta. 
  O deserto é o nosso cotidiano claustrofóbico, que reflete a nossa imagem nas câmeras, nos espelhos, na vidraça, nas panelas, no box blindex; o deserto nos tira companhias e nos dá mais de nós a nós mesmos. Vontade insana de fazer uma franja, quando vemos nossa testa brilhante em uma chamada de vídeo, desejo de passar um delineador às três da tarde, quando nos levantamos para encher a garrafa de água e encaramos o espelho do corredor. O gato nos odeia mais, pelo excesso da presença, o cão nos ama loucamente por tal abundância. Pernas, pés e voz o dia todo. Nunca o cão foi tão feliz.

  Esse é um tempo em que as economias são inúteis. Por que guardar para um depois, o qual não sabemos a que horas chega? Peso desnecessário para dias em que caminhar é tão difícil. Tudo o que for guardado será desperdiçado - como o fermento para pão: mágoas, arrependimentos, amor, desculpas, planos, sonhos partilhados com alguém que não respira o mesmo ar, vinho, cicuta ou cappuccino. Marcar um café, combinar as cervejas e o primeiro encontro: nada, nada , nada voltará.
   Esse é o tempo mais implacável que poderíamos viver, porque perdemos todos nesse estado de exceção. Exceção é alguém sair desse deserto sem ter arrancado muito de si para conseguir atravessar os oitenta metros quadrados de um apartamento.
  Esse tempo é o possível de ser vivido, casam-se nele, bebês nascem, novos mundos são construídos, enquanto outros desabam.

  Esse tempo é  como esse texto, que é ele nele mesmo. Pode ser que leve a outros, mas não é um corredor de acesso para outro conjunto de orações. Depois dele não haverá magicamente uma luz, apontando o final.
  Como eu não sou. Eu já sou um lugar agora, repleto de precariedade, mas não sirvo de conexão a nenhuma outra pessoa que não seja eu mesma, modificada pelo deserto, mas não a salvo dele. 
  Este tempo é a laranja que seguramos e descascamos durante anos, sabemos como descascar e comer, mas não sabemos quando teremos a próxima laranja nas mãos.

  Mesmo que o deserto se prolongue ainda mais, ninguém nos salvará, não há alguém vindo em nossa procura, tampouco sabem de nós os nossos próprios vizinhos. A não ser pelas músicas, pelo barulho do chuveiro às duas da manhã e pelo interfone que, vez ou outra, o entregador erra o botão do apartamento.  
  Não enviaram tropas, ninguém tem um plano para o nosso resgate. O outro lado já é este e, por isso, é preciso caminhar no deserto sem querermos nos despedir dele todos os dias. Porque na manhã seguinte, ainda teremos aridez e solidão. 

 Tenho que me levantar mais cedo, lavar o rosto e ter esperança. Tenho que passar o café, guardar a louça e me lançar sem medo. Tenho que fazer as unhas, responder aos e-mails de sexta-feira e não esperar o amor para depois do deserto. 
  Tenho que reabastecer de água o meu cantil, de coragem as minhas escolhas e de amor o meu deserto inteiro. Esse não é um tempo a ser esquecido; é um tempo que, como os outros, nos convoca a sermos leais à vida possível, pois o outro lado - oásis cada vez menos crível -  é na verdade, esse tempo em que estamos agora.


2 comentários:

Kellen disse...

Sigamos juntas 💛💜♥️💙

Amanda Machado disse...

Siempre, mana! Com você, siempre!