sexta-feira, 23 de abril de 2021

A máquina do mundo não é capaz de alcançar as nossas inesperadas delicadezas

   A máquina veloz deste mundo não passou por cima de mim nem de você. Ou até talvez tenha passado, mas sobrevivemos um pouco lúcidos ainda.
  O impiedoso tempo não ofuscou a sua imagem da minha retina e eu não deixei de ser presença para os seus olhos, mesmo quando eu me afastava deles. A engrenagem alucinada das más notícias não apagou o que já vimos e embrulhamos, com delicadeza, na memória. Na prateleira secreta das lembranças, nossos melhores dias estão empilhados.

  Os carros continuam acelerando na avenida, as crianças não saem mais para ir à escola, mas o barulho delas ainda ecoa no ginásio com telhado de zinco, perto do seu trabalho, à hora do recreio. Você ainda consegue ouvi-las?
  As bicicletas com seus donos em roupas justas e coloridas agora parecem se proliferar pela cidade. Reparou nisso também? Há três anos eram duas ou três dessas, hoje são dezenas, recortando o trânsito no início da manhã e final da tarde.
 
  Não sei a primeira vez que eu o vi, também não sei precisar quando começamos os cumprimentos, mas um dia eles passaram a integrar a minha rotina sem que eu pudesse perceber. Agora eu me lembro que você sempre estava lá e eu nem sei o seu nome.
  Esse mecanismo que silencia, ignora, negligencia e apaga rostos e presenças não nos conheceu. A urgência de ganharmos a vida não nos cegou de nós, mas eu quase não percebi o que me fazia falta. Toda terça, quinta e sábado por quase meia década seu bom-dia me alcançava já aquecida, com pouco mais de dois quilômetros corridos. Por mais de um ano o seu bom-dia diário ia na minha sacola de papéis e inseguranças para a sala de aula. Eu carregava você ou, mais certo ainda, era amparada pelo seu sorriso, o primeiro da minha tarde. Você, minha comunicação aberta com o desconhecido, simpatia gratuita e constante, mesmo para o meu humor tão incerto.
 
  Eu nunca soube como você se chamava, sabia do trabalho, porque estava nele quando me alcançava; com balde de água, escovão, galochas e luvas de borracha amarelas. Um metro e sessenta talvez, muitos centímetros a menos e a proximidade nas cinco palavras possíveis àquele tempo:
- Tenha um bom dia, menina 
  A máquina de moer gentilezas não passou pela sua rua, a massa de concreto que cimenta cordialidades não foi entregue no seu número. Você nunca me solicitou, indagou, constrangeu ou cobrou pontualidade. Às vezes às seis e meia, sete, sete e quarenta e cinco; ora  moletom e boné, ora regata flúor e óculos escuros. Cabelo preso, cabelo solto, curto e longo e você continuava a me reconhecer.

  A corrente de atracar branduras não nos tragou para o seu tempo de produtividade e sucesso. Os parques agora estão fechados, os sorrisos são menos vistos, possivelmente muito mais pressentidos e sair de casa para correr, durante alguns meses, ainda parecia arriscado. Então chegou a terrível limitação de não ter bons dias desejados. 
  Primeiro, lamentei pelos finais de semana sem grandes marcadores, pelos itinerários domésticos que se confundiram com o trabalho, pelo aniversário de ausências, pela família que não veio no natal e, depois, pelos rostos só superficialmente conhecidos que desapareceram, junto com as suas biografias imaginadas e as muitas possibilidades de afeição em cada esquina.  
  Mas essa máquina que nos rouba demoras, que interrompe valsas cadenciadas e oferece apatias, não nos atingiu ainda. Quando do prédio amarelo você me chamou - não sei que nome disse, se ainda menina, se outra coisa mais séria - sua voz atravessou a  música dos meus fones e quebrou o único ritmo que eu ainda mantenho, então eu me lembrei que existo e ainda sou vista.

  O moço de sorriso largo, a quem dei filha inventada de cabelos cacheados e esposa bonita, além de um quintal com uma goiabeira e uma horta com couve, cebolinha e salsa, me viu passar e parecia ter saudades. Quando eu o vi, eu me lembrei que também era vista. 
  Pequenos, eu e você; completamente desimportantes para o mercado, para as  estatísticas, para a história genocida que nos cerca agora; tímidos, sem encontros apaixonados, sem planos de fuga, sem pequenos sonhos partilhados, sem histórias que se pareçam, sem nem sabermos os nossos nomes é a saudade que eu nem sabia ter.
  Os olhos dele brilharam, enquanto eu assentava a minha pressa. Acenou de longe, sorriu, porque eu vi  os olhos apertados - dessa vez os dentes estavam cobertos - e eu não soube continuar a nossa interação. Só devolvi aceno e sorriso. "Somos lacônicos macacos, tentando nos comunicar", disse algum jornalista, uma vez.
 
  Quantas laranjas consumimos mesmo essa semana? Sua filha já aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas? O seu sorriso ilumina os meus dias, o seu bom-dia é o anúncio em megafone de que eu existo, você sabe de mim e me deseja qualquer coisa que não seja essa languidez que se demora. Tinha tanto a dizer ao desconhecido que fez falta aos meus dias. Mas não disse e acho, que de alguma maneira, ele entendeu o meu laconismo.
  A máquina construída para absorver gente e cuspir autômatos não nos alcançou ainda. Estamos no centro, na terceira avenida mais movimentada da cidade e não nos encontraram ainda.  De todos os céus alaranjados dos outonos vividos, o deste é especialmente melancólico, porque não devolveu o esperado, porque não cabe nele promessas que não sabemos se impossíveis. 
  Mais um aniversário comemorado em casa, um natal sem planos e uma corrida diária, que agora procura o doce bom-dia  de um desconhecido. Enquanto isso, vamos ludibriar as máquinas.


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