terça-feira, 27 de abril de 2021

A vida dentro da vida

  O pé encharcado, escorregando dentro do tênis, o short pesado de água, a camiseta grudada ao corpo e gotículas acumuladas na aba do boné, pingando pela viseira, como uma chuva branda dentro da tempestade. Abrigada em um  ponto de ônibus, penso se foi a melhor escolha. A chuva aumenta e a guarida parece precária demais para a demanda, continuo me molhando e, sem movimento, começo a sentir frio. Mais três quilômetros e eu chegaria em casa, vinte minutos antes, na saída, e eu não teria que pensar em uma resolução rápida. Enfrento a chuva que aumenta ou espero, pacientemente, que ela se abrande?     
  O céu escurece ainda mais, os relâmpagos ficam menos espaçados; me sinto vulnerável parada, mas acho arriscado enfrentar uma chuva mais pesada, sem condições de correr - à esta altura, o tênis parece uma barca inundada. 

  Não é a minha primeira chuva desprevenida, tampouco o primeiro erro de cálculo ou o risco assumido com consequências. Estou molhada, com frio, ansiosa  pelo tempo que terei que esperar até a chuva ser menos violenta e invocando silenciosamente qualquer ajuda.
  - Que um conhecido passe e me veja, que um táxi vazio atravesse a avenida e eu tenha tempo de pará-lo, que eu não chore agora. 
 
   Depois da oração improvisada e com a avenida começando a alagar, a frase materna, que eu cresci ouvindo, chega para aumentar meu desassossego:
 -  Precisava passar por isso?
  Minha mãe, muito pragmática, repetia a frase-castigo para toda e qualquer situação cuja consequência nos impelia a gritar por socorro. Se eu estivesse em uma brincadeira cujos riscos eram conhecidos e assumisse-os, se houvesse um tombo, um joelho ralado, uma tampa de dedão arrancada e chorasse; enquanto ela fazia a higienização e o curativo, a frase certamente chegava, ainda enquanto eu soluçava:
 - Precisava passar por isso?

  Na concepção da minha mãe, se o tombo era em decorrência de uma má escolha na brincadeira, erro no tempo, no impulso, na percepção do espaço de um pulo, era desnecessário passar pela situação da dor. Aquela dor, para ela, era inútil, assim como o choro ou a mágoa pela queda. 
  Para minha mãe as dores se dividiam em duas categorias muito claras, as inevitáveis - fruto das adversidades que a vida nos impusesse, como morte de um ente querido, doença ou algo provocado por outra pessoa contra a nossa vontade e tolas - resultado de escolhas ruins. Minha mãe acolheu ambas sempre, sem subestimar a dor tola por nenhum segundo. Mas a frase viria e ajudaria a sangrar um pouco.
  Eu precisava passar por isso, hoje? Porque queria me exercitar, porque tenho o propósito da atividade física regular, só por isso eu deveria ter ignorado os sinais e a previsão do tempo do jornal da tarde? Agora eu estava molhada, cansada, começando a sentir frio e medo, porque estava escuro e os relâmpagos eram constantes. Molhada, continuava com o celular ligado, ouvindo a introdução de um podcast já conhecido. Nesse podcast a apresentadora pergunta sempre ao ouvinte: Como vai a sua vida dentro desta vida?
 
  A pergunta é repetida na introdução de todos os programas e eu, encharcada, pela primeira vez tive o entendimento do que isso significava. A vida dentro da vida. A minha vida dentro de uma vida maior. E era pequeno o meu contratempo dentro daquela outra vida da qual eu também faço parte. Era uma chuva na minha vida, apenas água e ventania efêmeras, da quais eu me salvaria em breve. 
  E isto não valia choro, arrependimento ou a frase materna pontiaguda. Em algumas horas eu não teria mais que pensar se deveria ou não ter saído às quatro e quarenta e cinco, se eu deveria ou não começar a usar o tênis novo, se eu deveria ou não manter a atividade ao ar livre; com o risco das pesadas chuvas.

  Em alguns minutos, a potência da chuva enfraquecia e eu seguia o itinerário com menos riscos, agora eram alguns pingos e muitas poças, mais nada. Lembrei-me da frase atribuída ao Martin Luther King, que eu indiquei ao meu primo que saía de um emprego e queria escrever uma despedida, à essa época eu gostava de ajudar a escrever discursos, cartões, cartas. "Prefiro na chuva caminhar que em dias frios em casa me esconder", era assim que começava ou terminava a mensagem de despedida. É assim, um pouco, que eu tenho colecionado tombos e chuvas imprevistas.
  Se a mãe assistisse a minha chegada e lançasse a pergunta:
  - Precisava passar por isso?
  Eu teria respondido:
  - Não precisava, mas já passei.
  Entre a vida ensinada e a vida vivida, a imensurável distância. Talvez a minha mãe saiba disso, mas finge se esquecer, enquanto passa o algodão com água boricada no meu joelho esfolado; só para ter o que falar e abafar meu choro. Entre a vida ensinada e a vida vivida, ainda temos nós, imprevisíveis e pequenos.
 
 Talvez amanhã chova, talvez eu atravesse a cidade sob a ameaça de chuva e não me molhe, talvez, de novo, sinta o medo da imprevisibilidade e seja encharcada por ela. Mas amanhã eu saio de novo.  
Alguma vez eu li uma matéria de jornal ou artigo de revista sobre uma  pesquisa científica cujos resultados apontavam para o esquecimento protetor. Dizia, tal estudo, que esquecer a dor é fundamental para a nossa sobrevivência, o cérebro não apaga a lembrança da sensação (como doeu, sofreu e era intensa), mas ele não repete a dor do jeito que ela foi, quando nos lembramos, para que consigamos continuar a assumir os riscos.
  A minha vida dentro da vida é isto: tomar chuva e voltar a correr no dia seguinte. Precisar não precisa, mas eu escolho sair. 
  Lavei o tênis, as roupas, sequei o celular e tomei um banho longo. Ainda no chuveiro, me lembrei da despedida do primo e tive saudade.  Se, por acaso, estiver me lendo hoje, me ligue. Não precisa, mas seria bom.
 

5 comentários:

Bel disse...

"...é primaveeeeera, faz chuva! hoje o céu está tão lindo!" salve, Tim!
se não tivesse chuva, não teríamos flores. se não tivesse saído ontem não teríamos esse texto maravilhoso. se não tivesse turismo não teríamos nos conhecido.rs.e por aí vai...

Carla Machado disse...


Ligar depois disso é inevitável... duvido que ele não ligue...

Amanda Machado disse...

Chovendo amores aqui...amo vocês! Gracias pela leitura...muah

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, todo o abril de 2021

Querida Amanda, prometo ser breve

Houvesse a consulta prévia do título eu votaria na máxima do controle da dor, lá no começo da crônica urbana - Que eu não chore agora...

Just Like a Woman, antecipo que sou fã do Dylan ,é um ponto de reflexão. Afinal, termina a canção com os dois versos abaixo

Then you ache just like a woman
But you break just like a little girl

É como se a mulher dissesse - que eu não chore agora ...

E a protagonista da crônica sofre esta dor de não poder chorar para mostrar algo a si mesma, à sua vida, ou talvez à mãe que ela cresceu.

Qual o sentido da vida? Quando jovem acreditava que seria curtir a vida adoidado. Hoje, depois dos 60, penso que o sentido da vida é a vida em si, tal qual a mãe da moça da crônica.

Amanda, você tira com a pinça esta potencia feminina e a transpõe com uma delicadeza que nenhum inconsciente quer seja coletivo, quer seja pessoal, deixa passar desapercebido. Acho sensacional isto. Esta percepção do Eu como um todo em todos nós.

Não estenderei muito, psicanalista fosse, recorreria a Lacan, que disse - A mulher não existe! - Caramba, Lacan ouvia Bob Dylan (ou o contrário). Se a mulher não tem uma representação de si mesma, isso significa que ela pode inventar sua essência, por múltiplos fatores, principalmente porque é matriz da vida. Pode ser o que quiser.

O que está condensado nessa oração aforismática (A mulher não existe) é uma radical revolução no laço social. - Eva foi a primeira mulher, e foi o primeiro ser humano a gozar do Livre Arbítrio. E ganhou as dores do mundo Fosse Adão, teria uma estátua em cada praça. A mãe estava certa - "Precisava passar por isso?"




Amanda Machado disse...

Minas Gerais, derradeiro dia de abril de 2021

Caro Paulo,
Deveria...deveria ter uma consulta prévia ao título e certamente o seu seria eleito! Como, geralmente, eu começo por ele, às vezes precisa ser revisto e é recorrente que eu negligencie qualquer revisão. Enfim...não precisava passar por isso...rs

Mas saiba que as suas colaborações são sempre comemoradas por aqui e intensamente desfrutadas. Eva, Lacan, Dylan, a mãe...todos com impressões e/ou dúvidas sobre o ser-mulher. E se não há resposta única (ainda bem) seguimos com as nossas interrogações. Obrigada pela visita. Volte sempre!
Abraços,
Amanda