quinta-feira, 15 de abril de 2021

Qualquer coisa que não seja tudo

  Nos últimos anos só o cachorro. Mais nada que não seja o cão. A mãe viajou por quase seis meses, o filho cresceu, o marido é agora um estranho que passa do outro lado da calçada e só visita o filho duas ou três vezes ao ano. 
- Ele sente tanta falta de você. Ele precisa tanto de você. 
  Eu queria dizer quando encontro o marido dela pelo bairro, com o  mesmo sorriso de sempre. Mas como pode ser tão alegre, se o filho precisa e ele não está? Não é da minha conta e eu ouço a mãe dizer ao filho, todos os dias, enquanto tomo o café,  que ele precisa se levantar, tomar banho, assistir às aulas e ser alguém completamente diferente do pai.
 
  Ele precisa ser diferente do pai - é um desejo dela e imagino que dele também, talvez até mais forte que o dela. Já o ouvi dando murros na parede, gritando de dor e incompreensão pela ausência, já o ouvi perguntando à avó e à tia, o porquê de só o pai dele ser assim - fracassado e inútil -  foram as palavras que ele usou, mas temo que sejam para falar mais sobre como se sente em relação a si do que sobre o seu pai. Já o vi quebrando paredes que o pai levantou, arrancando plantas que o pai aguava, mudando a cor das paredes da casa. Já quis segurar a sua mão ou emprestar um livro do Kafka, não aplacaria a dor a leitura, eu sei, mas talvez a abraçasse e, às vezes isto já é uma grande coisa a ser feita. Eu mesma tive dores imensas carregadas por páginas que hoje vivem tranquilas nas minhas prateleiras. Mas meu pai nunca me deixou e isso eu não conheço.

  O filho cresce, a mãe já voltou da viagem longa e a mulher parece sempre a mesma; rígida com a rotina do filho - talvez porque esteja só nessa condução e tenha medo de não ser suficiente - intolerante com as notícias sobre política que a mãe tenta partilhar - talvez porque não queira confrontar uma realidade muito maior que a dela -  e afetuosíssima com o cão. O cachorro é o detentor dos olhos, afagos, conversas e toda a atenção do seu universo. O cão é a sua comunicação quase sem ruídos, é a maior expressão da sua existência e ele certamente corresponde a esse amor; porque sempre chega quando ela chama, porque não a deixa só e, possivelmente, porque confia nela sem concessões. Não aponta, não questiona nem, ao menos, solicita nada. Ao cão bastaria comida e água nas respectivas tigelas, mas ela é sempre mais, justamente porque ele não sabe querer mais.

  O menino cresce e a raiva dentro dele também.Ontem quebrou algum móvel em casa, me assustei com o barulho dos chutes e, mais, com o choro que veio depois; soluçou até. Acho que dormiu de tanto chorar. Acho que ainda dorme, dez horas depois da erupção; a lava esfriou e mais uma montanha de rochas se ergueu entre ele e a mãe. A avó interviu, a mãe ameaçou retroceder em alguma realização de um desejo dele, enquanto o cão acompanhava silencioso a movimentação. Até isto esse cachorro tem, uma lucidez maior que a de qualquer humano. O cão dá espaço para o menino, sozinho, gritar toda a sua raiva. O cão acompanha a mulher, mas não produz nenhum som que possa concorrer com o pedido de socorro do meu vizinho, a quem gostaria de emprestar Kafka, mas talvez não seja a hora.
 
  O cão vai morrer; quero dizer, já houve o anúncio na casa vizinha de que tal destino está muito próximo. Câncer renal, disseram.
  Era apenas uma dermatite, no início da pandemia, em tratamento caseiro e que valia só o acompanhamento de um acadêmico a cada quinze dias, mas depois o cão perdeu o apetite, tinha dores abdominais, o que o deixava muito abatido. Eu ouvia seus ganidos quase o dia todo. Foi a única fase em que o cão tinha mais voz que a raiva do menino. E dor é mais forte do que raiva? Eu me perguntava.
 
  E embora a mulher sofra, ela está determinada a fazer do cão o ser mais feliz e satisfeito da casa, antes da sua partida. Por isso a viagem da mãe, as inclinações políticas dela, o crescimento do filho e da agressividade dele que acompanha a fita métrica não monopolizam ou concorrem com a atenção que ela dá ao cão. 
  Eu sei e acho que os moradores da casa também sabem; ela sofre antecipadamente com a partida do ser a quem ela dedica amor e o recebe, sem nunca precisar pedir. Ela precisa daquele cão, até mais do que ele dela. Ela sabe que ele tem os dias abreviados a cada vez que desperta neste mundo e tenta se segurar nas patas que nem sempre o obedecem. Ela sabe que ele não dura e que a partida não implicará em passeios dele na calçada oposta e presentes embrulhados em papel com estampa infantil duas vezes por ano. Ela sabe que a inevitável partida, a devolverá despedaçada para si.
  É ruim precisar de alguém e não ter, sabe? É ruim, inclusive, precisar e ter. Porque é um peso que não queremos dar a quem amamos.

  Ela ama o cão e precisa dele. Ela preferia só amá-lo, mas quando viu também precisava. Ela só queria ser mãe, como tantas da rua são, mas, de repente, era solitário demais, desafiador demais, maternidade de uma raiva que ela nem sabe que ajudou a cultivar. Ela, tão cuidadosa com as particularidades do cão, de quem corta unhas, apara pelos e trata a dermatite com pomadas e compressas de chá; não soube como colocar unguentos nas feridas fundas do filho, quando ainda eram bem rasas. 
   O filho precisa dela, o grito dele é esse. O filho precisa do pai, a agressividade nos chutes e socos é essa dor que escapa sem remédio. A mãe dela precisa de interlocutor, que vote, que lute, que também se indigne, mas não encontra. Eu preciso de esperança, quando só queria amar um amanhã-promessa.
  
  Essa noite, antes de me deitar, abri a cortina do quarto para fechar uma fresta na janela e a vi, sentada em um degrau da varanda, afagando o cachorro; despedindo-se sem querer que ele vá. Ela resmunga algo e acho que vejo uma lágrima; mesmo que estejamos no escuro. 
  Por que dói tanto uma partida pressentida? Por que amar e precisar se confundem no cesto de linhas? Por que não aprendemos a amar uma coisa e a precisar de outra que não amamos? Fico alguns minutos com a luz apagada, a janela fechada e a fresta da cortina aberta para acompanhar esse equívoco da casa ao lado e que, certamente, é meu também.
  Sentada na cama, com medo de fechar os olhos e não enxergar mais essa encruzilhada tão humana de amar e precisar, que parece tão nítida agora; que ao menos eu saiba onde as duas começam a se tocar. Que esse cão não morra agora. O cão não pode ser tudo. Ninguém pode. Porque depois que partem não sobra nada. Que esse filho seja o que puder ser, que não seja o pai, mas que também não lute para não ser. Que ele seja qualquer coisa que não seja tudo. Que a casa ao lado continue amando, mas que aprenda a precisar cada vez menos.

 


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 16 abril 2021

Querida Amanda
uau!!! Que conto é este?

Coloquei para rodar o vinil da Aretha que postou para poder escrever em paz. Vi o menino que vê o pai pelos olhos da mãe, rígida como descreveu, e uma avó complacente consigo mesma, uma auto-complacência explícita.

A mãe é rígida ... aparenta muita energia, força e disposição física por todo o corpo. Acredito que seja bela (todas as rígidas são belas), com curvas nos lugares certos, com forte capital estético, músculos rígidos, etc. Porém, a beleza é apenas para si e parte doada ao cão que não tem por onde debater-se. É uma mulher que exige perfeição de si, do outro e da vida.

O marido, que deveria ser o ex, mas a rígida não admite ex, ele é o marido e o pai ausente, mas é o marido que garante a ela sua performance individualista. E o marido sorri, vive a liberdade, a possibilidade de se encontrar em braços mais amáveis e menos rígidos.

Uma mulher rígida faz todos estes atos acima relatados - fica sozinha por que quer dominar tudo e todos, não abre mão de uma competição para mostrar que está sempre certa. Uma mulher rígida não ama ninguém senão a si mesma.

Talvez a auto-complacencia da avó, conjecturando, seja a chave hermeneutica de uma família marcada por uma rígida moral sexual, com lugares muito claros em relação às figuras masculinas e femininas. Por tal linha de raciocínio, podemos olhar o conflito ocorrido nesta família como um microcosmo que trouxe à tona, de maneira radical e dramática, a dor de um filho que não pertence a este mundo, mas não teve a a opção de escolha.

Desculpe, estava divagando e o loop da Aretha já fez umas quatro ou cinco voltas.

Um abraço!!!!!!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 16 de abril de 2021

Caro Paulo,
as suas contribuições a este blog, já não surpreendem, mas quando chegam são sempre recebidas com deleite e identificação. Os perfis psicológicos das personagens, delineados por você, parecem corresponder plenamente ao "causo" trazido. Também tenho uma forte impressão de que a rigidez é um sintoma de um possível narcisismo. Um sujeito que só sabe amar a si ou alguém mais próximo a imagem que ele tem de si.
Enfim, quantos sofrimentos cabem numa casa, família, relação? Quem pode doar ilimitadamente, sem contrapartida ou expectativas demasiadas? O cão. Somente ele. Aqui, os sofrimentos parecem se acumular, colidir...mas o mais aflitivo desconfio que seja o do menino. Que carece de olhar amoroso para crescer na integridade das suas (im)possibilidades.
Gracias pelas leituras generosas e partilhas enriquecedoras.
Abraços, com os desejos de melhores dias
Amanda

PS: Aretha me emociona tanto!