sábado, 1 de maio de 2021

O deserto e o oásis também fui eu quem inventei

  Para esses dias mais breves em que as noites duram mais e o frio atravessa frestas de portas e janelas,
antes de sair da cama, eu invento uma casa com varanda, dois cães muito mansos e velhos, um conjunto de xícaras esmaltadas e duas jiboias penduradas na janela da sala, as quais eu rego duas vezes por semana. 
  Nem escovei os dentes ainda, mas já levantei um muro de tijolos ao seu redor e sonhei segurança. Ainda assim, rezo  antes de dormir, peço proteção, tempo bom e pratos fartos em todas as casas. Envernizo portas, arrasto móveis, limpo rodapés, arranco líquens dos cantos do muro, organizo armários e gavetas, mas ainda perco o guarda-chuva, as chaves e os documentos.
 
  Antes de me olhar no espelho, já teci colcha macia e estendi em  cama larga de colchão de molas.  Coloquei o feijão colhido na peneira e mais tarde vou separá-los das bagas. Coloco a água no fogo, deixo o resto de café torrado, da semana, na pia e invento uma jarra de flores pequenas em cima da mesa.
  Fecho a porta do banheiro e crio vozes diversas, cujos murmúrios me distraem e fazem companhia durante o banho. Começava a cantarolar, quando uma das vozes grita uma pergunta do outro lado da porta, fecho o chuveiro para escutá-la e antecipo a minha saída.
  - Vou querer ovo sim.

  Como o ovo cozido e sorrio para rostos afetuosos e mornos, inventei uma manhã de sol, café e leite com nata, um pedaço de bolo com um pingo de goiabada em cima. Inventei um assunto sobre o cão que manca - eu o fiz mancar agora e já fico arrependida. Conserto o equívoco logo em seguida:
  - Não está mancando não, é impressão sua.
  Agora um vizinho aponta o rosto em cima do muro e quebra o silêncio que começava a se instalar. Pede algumas folhas de boldo para fazer chá para a nora que não está bem do estômago, promete uma receita de bolo de milho cremoso e conta sobre a gravidez inesperada de alguém próximo.
  Lavo a louça, alguém seca. Uma criança corre atrás do cão, escutamos as suas risadas e quando esbraveja no meio da brincadeira:
  - Assim não, Matias!
  Um dos cães é o Matias.

  O dia acontece como uma coreografia em fase de ensaio. Não é raro alguém esquecer um passo, errar no tempo - um, dois, três; um, dois, três...espera! Às vezes alguém tropeça, demora para concluir uma pirueta, erra o tempo do espacate, esbarra pernas ou braços no dançarino ao lado. Mas a música recomeça sempre e os passos seguem. Invento uma chuva ao final da tarde ou um céu de estrelas quando o silêncio, que eu não inventei, se senta no sofá da sala, da casa com varanda e jiboias na janela.
  À noite, todas as invenções dormiram antes que eu pegasse no sono. Escuto o escuro e o som parece antigo. Inventei um deserto  de muitas distâncias e o oásis sonhado também fui eu quem inventei. Tenho sonhos antes de fechar as pálpebras, mas não sei se amanhã me lembrarei deles. Não sei para quando, não sei como se realizarão, tampouco quando começaremos as tentativas. Mas o tempo agora é promessa. Agora é não insistir com portas cerradas, tentar não quebrar mais corações (inevitável, mas também pode haver alguma ternura) do que paredes.
 
 Eu ainda inventei um homem comum e de espírito intranquilo, cheio de silêncios discretos e  um olhar tão terno e absoluto que nunca mais quis ser olhada por ninguém. 
  Inventei o seu tom de voz e a textura do cabelo, inventei sua alma singular e lealdade aos próprios princípios. Inventei seu passado e a sua árvore genealógica. Inventei um filme, uma música, um álbum de preferência do homem. Esse homem não é você.
 
  Inventei uma mulher grande, contraditória, sardas no nariz, rugas na testa e sobretudo marinho. Voz grave, abraços definitivos e lágrimas fáceis. Uma mulher que não tem casa, mas projetou um lar, o seu quarto não tem porta, mas ninguém nunca o invade.
  Inventei uma mulher de cabelos longos e frases curtas, uma mulher que faz café, escreve e tranca portas à noite. Uma mulher que sonha sem hora certa, que dorme antes dos créditos finais e que sabe ter paciência e ouvir vozes sem temer.  Essa mulher sou eu.

  Eu inventei os desertos que eu precisei atravessar. Eu inventei  também o oásis, esse lugar de fantasia onde eu posso descansar, enquanto o outro lado não chega.


2 comentários:

Bel disse...

uau! que primor! lindo, lindo!

Amanda Machado disse...

Poxa...que liiinda! Vim aqui ver se tinha salvação, porque achei ruim ao publicá-lo ontem à noite, mas você gostou...aí me quebra! rs
Obrigada, Iaiá!