domingo, 11 de abril de 2021

Para reparar o coração em um domingo

  Ao acordar, lembrar-se de uma oração que aprendeu quando criança; alguma que fale de anjos, de bondade ou de uma divindade compassiva, nunca ameaçadora - se puder. Ou cantiga ou poema, alguma imagem que inspire uma vida menos dura; eu gosto da moça deitada na grama da crônica do Drummond. Eu me levanto todos os dias pela moça.
 
  Ter duas ou três coisas a dizer a alguém. Ter sempre o que dizer, ainda que seja uma repetição, e não adiar muito a entrega daquilo que deseja que a pessoa receba. Pois se o silêncio permanecer por muito tempo, as memórias podem não ser suficientes para sustentar o fogo aceso. O silêncio arrefece os sentimentos.

  Lembrar-se que acordar na sua terra nem sempre é bom. Às vezes tudo é longe demais, a espera é longa e angustiante, as placas não indicam saída alguma, as esquinas estão vazias de encontros e os bares de portas cerradas. Mas acordar em um solo que tenha alguma história nossa é, ainda, privilégio. Abrir as janelas da casa para sonhar, num domingo, é um trajeto bastante simples, mas, nos últimos tempos, nem sempre acessível. Lembrar-se da beleza que é o seu idioma, as muitas canções que só são bonitas na sua língua, as muitas admiráveis pessoas que vivem consigo e que a têm com elas, mesmo se distantes.
  
  Fazer algum trabalho manual que não seja complexo, talvez pregar um botão, reparar um fio solto no tapete, remendar uma linha arrebentada do crochê que, um dia, a avó fez, cerzir uma calça para que ela dure mais, não como nova - porque o remendo é muito visível - mas uma peça que ainda seja útil ou reconfortante e que nos acompanhe por mais tempo. 
  Lembrar-se que as coisas acabam e as pessoas, embora partam, nunca vão embora definitivamente. Lembrar-se que objetos podem ser reparados inúmeras vezes,  já as relações nem sempre. 
  Lavar as janelas ou o chão, aguar as plantas e tomar um pouco de sol. Faz bem o exercício, faz bem a sensação de que a água pode recuperar o brilho das coisas e manter a vida.
 
  Ler inúmeras vezes a mesma mensagem, única frase que importa nos últimos dias, seja ela o que for. A minha é simples, a minha é a resposta para uma pergunta que eu nem sabia ter. A minha, recebida numa quarta ou quinta-feira antes de dormir, tem uma profundidade e um lirismo que ninguém além de mim pode alcançar. 
  Ler a mensagem e não se esquecer de ser a mesma pessoa para quem um dia o remetente escreveu; honrar aquelas palavras que a salvaram da indiferença. Ler a mensagem como uma prece diária, oferta a uma divindade tão humana que possa compartilhar da mesma leitura. Desejar que o remetente sempre envie as mensagens em tempo, que os destinos sejam diversos e que as suas palavras resgatem muitos afogados.  

  Juntar os cacos da xícara marrom que espatifou no chão, ainda suja de café. Recolher os cacos sem ferir os dedos, sem culpar-se pela queda ou descuido; sem requisitar o exercício do "se". Está quebrada  a xícara, ficará sem par o pires, sujou o chão de pingos de café e pedaços minúsculos de vidro - essa é a cena possível na cozinha às nove horas do domingo. Apanhar cada pedaço de xícara como se fosse o próprio coração.
   Recolher os pedaços para que não fira qualquer pé, que chegará depois que tudo parecer limpo na cozinha. Acondicionar os pedaços de xícara, antes em jornal, para que não escape por furos acidentais nos sacos plásticos. Manter os pedaços pontiagudos longe de mãos que nunca seguraram a xícara. Preservar o mundo do barulho de um coração espatifado no chão da cozinha; ninguém precisa saber o que se passou, é solitário quebrar e recolher os próprios pedaços.

  Não aguardar telefonemas, cartas, notícias de um país estrangeiro, tentativa de comunicação de seres de outras dimensões e planetas ou, somente, novas mensagens. Não esperar nada de ninguém, ao menos no domingo. 
  Não sobrecarregar o dia com expectativas que não podem se cumprir. Dar ao domingo a autonomia de ser o fracasso mais autêntico da semana; ninguém chama, nenhuma placa avisa, nenhuma cura chega e o salvamento só pode ser rememorado -  então não vá se afogar no domingo. 
  Aproveitar o dia para espatifar xícaras, cantarolar canções antigas, ter alguma fé, remendar fendas, abrir janelas para novos sonhos e lamentar pela terra que não parece sua agora. Ter o domingo inteiro para recolher os cacos da xícara marrom do chão da cozinha e os muitos pedaços do coração por toda a casa; em silêncio e só. Para reparar o coração em um domingo, café, remendos e solitude.
 
 


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