quinta-feira, 20 de maio de 2021

Ano que vem se Deus quiser é este, há cinco meses

  Quatrocentos e vinte nove dias depois e ninguém ainda veio nos salvar. Oitocentos e cinquenta e oito banhos e não teve mão para trazer uma toalha esquecida no varal. Se quiser se secar, vai ter que expor a sua nudez pelo corredor até à varanda. 
  Ninguém fez serenata sob a nossa janela e os poemas são somente esses que nós mesmos marcamos com lápis sem ponta. O tempo não foi mais generoso, é o mesmo de antes e envelhecemos tanto quanto a nossa genética nos permite.
  Quem traz o jantar, também traz o remédio, a roupa, os eletrodomésticos, o boleto da internet e qualquer mercadoria que nos faça menos infelizes por algumas horas: batons, brincos, um par de tênis e máscaras Pff2.

   Primeiro, não fomos mais à padaria todos os dias. Fizemos bolos, massas caseiras, encomendamos fermento biológico e ampliamos, por algum tempo, nossas habilidades gastronômicas e domésticas. Aprendemos, finalmente, a dobrar lençóis com elástico, para descobrir que não é assim tão importante. 
  Agora o pão é, de novo, o do supermercado, da geladeira à torradeira. Os lençóis ficam esticados na cama, mesmo que os dobremos do jeito antigo. Não pintamos as portas, não trocamos os rodapés por madeira mais clara. Também não ficamos fluentes em outro idioma e tomar chá parece mais prazeroso do que o vinho, que achávamos tão glamouroso, lembra? 

  Não continuamos a ioga diária e o tempo que não gastamos com o deslocamento não é  investido em meditação ou dormir mais. Essas horas são gastas com mensagens de desculpas por não termos respondido às mensagens de outros dias, quando não tínhamos tempo ou disposição. Aliás, ambos são tão escassos quanto antes. 
  Continuamos em casa e cansados; outras pessoas se bronzeiam, fazem festas, visitam cartões postais e nós não saímos dos mesmos metros quadrados há mais de um ano; pálidos. Mentem na TV e nós assistimos a tudo com a indignação exausta da frase materna que já adotamos antes de termos um filho - eu avisei.
  Sábados, domingos e feriados só se diferenciam dos outros dias da semana porque podemos acordar mais tarde, embora quase nunca isto ocorra. São diferentes dos outros dias também porque não respondemos aos e-mails e às mensagens de trabalho, se não quisermos e porque nosso almoço ou jantar não é antes ou depois de alguma reunião.
 
  Sessenta e uma semanas e a fruta não está no tempo de colher do pé. Mais adubo, mais água, mais raios solares e espera. Dez mil, duzentas e noventa e seis horas, esperando um ônibus que prometeram que passava sim nessa avenida, só não tinha horário muito regular. Caminhar teria sido menos penoso, mas não há a possibilidade da escolha.
 Um ano e dois meses de uma gravidez que não sabemos o que parir. Sem chá de revelação, sem listas com nomes possíveis, sem futuros projetados para uma vida que queríamos para sempre dentro da nossa. Ano que vem se Deus quiser é este há cinco meses e já protelamos os nossos prosaicos desejos para um ano seguinte, do qual também não sabemos nada. Nunca soubemos,  é verdade, mas a consciência dessa impermanência nos atropela agora.

  As quatro estações passarão mais uma vez e nem o cartaz com a paisagem modificada, da sala da educação infantil, nós vemos mais. Uma árvore verde era o verão, uma verde com flores e frutas era primavera, uma com folhas amarelas era o outono e a com galhos desnudos era o inverno.
 Porque o dia é mais curto, a casa mais gelada e o moletom é requisitado sabemos que o inverno se aproxima; sem árvore que nos prepare o espírito. 
  O nosso microcosmo é sufocante, mas alentador. Porque temos algo, porque a nossa solidão é partilhada e não estamos no escuro completo.
 
  E eu ainda estou aqui, embora às vezes não pareça. Lendo em voz alta o trecho de um livro que me ilumina, chorando com os filmes que eu resolvi não poder mais adiar, sonhando com um futuro em que caibam as nossas vidas - um pouco arranhadas, um pouco feridas -  paralelas ou não, mas vivas. 
  Somos Florentino Ariza, caminhando para um amor do qual nunca pudemos nos esquecer, mesmo que ele tenha deixado de responder as nossas cartas há anos. Não importa mais quanto tempo levará para recebermos a sua resposta; ele já está com a nossa escrita nas mãos. Uma certeza como a de Ariza é o que agora nos guia, um amor nos tempos do cólera.


2 comentários:

Anônimo disse...

Essa música é linda. Parabéns por postar esse achado. maravilhosa!

Amanda Machado disse...

É mesmo linda...que bom que gostou!