quinta-feira, 6 de maio de 2021

Porque esquecemos ao contrário

  Acontece em tempo próprio, sem afobação, sem obedecer aos pedidos, sem se comover com as súplicas. O choro não adianta, o desespero não faz o processo avançar. Nunca é demasiado tarde, mesmo que tantas vezes pareça, tampouco prematuro. O esquecimento não manda avisos, não distribui recados, só chega e se instala; sem nem pedir conselhos. O esquecimento não é privilégio, mas também não é castigo para nada; é artigo universal e experiência, embora comum, só sentida individualmente. Não partilhamos o esquecimento, porque não sobra nada quando a memória se perde.

  Só esquecemos quando não é mais urgente o apagamento. Esquecemos quando lembrar deixa de ser um corte sobre a carne, um alfinete entre as costuras de uma roupa apertada. Esquecemos quando crescemos um pouco, quando não choramos mais nem temos uma mãe para assoprar o machucado. Esse é o tempo - quando já podemos andar sozinhas de novo.
 
  Esquecemos só depois de termos lutado muito contra as lembranças; estamos exaustas no ringue, mas a memória ainda posa triunfante. Ela ganha quantos rounds quiser, ela é a dona, ela é quem manda. E o esquecimento não vem nos socorrer; às vezes é preciso mesmo apanhar, sucumbir aos detalhes persecutórios. O cheiro que chega e que lembra um dia, uma pessoa, um sonho, planos que não se cumprirão mais. Uma música exaustivamente ouvida e, agora, parece não ter outro sentido além de acender o pavio da dor que parecia se dissipar. Um detalhe que só nós vemos, uma camisa amassada, uma toalha em cima da cama, um cinzeiro virado com a boca para baixo. 

  A memória tortura até acharmos que seremos, para sempre, submetidas a ela. Quando começamos a nos conformar com a ideia de não esquecermos, quando não resistimos mais, não por estratégia, mas por falta de armas, só aí então, o esquecimento se prepara para a visita.
  Esquecemos quando podíamos começar a nos lembrar porque não dói, porque a imagem não nos destroçaria, porque os cheiros, as músicas e as lembranças que ambos acessam não nos abate, não como antes. Talvez ainda incomode um pouco, mas sem a agudeza de antes.

  Um dia acordamos e a ideia que nos perseguia se diluiu sem esforço; é como se a tivéssemos perdido em algum sonho. Um dia o carro passa e lembrança nenhuma nos atropela, a fogueira não queima, o teimoso desiste sem luta. Um dia as cinzas do fogo são levadas para longe, nada sobra; nem a consciência de que o esquecimento nos visitou ontem à noite. 
  Sem alarde, sem barulho sequer no sino dos ventos, silencioso e implacável o esquecimento derruba uma casa inteira sem levantar um grão de poeira. Três quartos, sala, cozinha, varanda, quintal e garagem somem numa noite; mas ninguém o viu chegar, fazer o seu trabalho e sair altivo por mais um feito.
 
  Esquecemos quando não nos empalidece um nome, uma imagem, a possibilidade de um reencontro ou a face já não se enrubesce de fúria. Esquecemos o cheiro, a voz, as singularidades que antes achávamos ternas e num minuto de mágoa nos causou náuseas; mas só por último o rosto, que já não significa mais nada. 
  Podíamos esquecer o sorriso antes de tudo e depois os olhos, mas são os últimos a se apagarem. Talvez por isso a demora da partida. 
  Esquecemos ao contrário. Esquecemos quando não faz mais sentido ter uma foto no álbum que parece contar a vida de outra pessoa, daí então estamos preparadas para tirar as fotos com corpos sem cabeças, as quais decepamos no início. Só então, aquele dia é completamente apagado, depois de destacada a foto da página do álbum. 

  Esquecemos lentamente e ao contrário para nos lembramos que um dia ordinário pode nos torturar profundamente a alma e, numa manhã qualquer, esse dia partir, como se essa história fosse de uma outra pessoa. Alguém a quem só conhecemos de longe. E, por isso, nem parece que nos doeu em algum tempo. Esquecemos quando finalmente aceitamos que podemos continuar a seguir com a imagem e, então, ela se desfaz e vamos custar muito a nos lembrar de qualquer traço. Esquecemos quando deixamos de lutar contra a memória, esquecemos quando admitimos que não somos nós que escolhemos quando mandá-la embora. 




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 07 maio 2021

Prezada Amanda
Cronista atemporal da vida

Nada de analisar hoje. Vou falar o que fez sua crônica das memórias anunciadas, um vitral do paradoxo Gabo. Não que a tenha relacionado a Gabo, mas estamos numa carta, e ao recordar coisas e temas, Gabo surgiu agora, do nada, talvez tenha lido algo aqui que me arremeteu para Crônicas de uma morte anunciada, que é um marco no mosaico das coisas da memória, de leitura obrigatória.

Foi navegando nesta mar de lembranças que me ocorreu Clesio de Souza Ferreira. Um famoso poeta anônimo, professor universitário, cuja obra é muitas vezes cantada sem alguém saber da sua origem.

Clesio, já falecido, é autor, por exemplo, do poema Fascinação, escrito e publicado lá pelos anos 1970, que nos inicio dos anos 1980 foi musicado por Fagner -

Um dia vestido
De saudade viva
Faz ressuscitar
Casas mal vividas
Camas repartidas
Faz se revelar

Quando a gente tenta
De toda maneira
Dele se guardar
Sentimento ilhado
Morto, amordaçado
Volta a incomodar

Foi este cheiro que senti ao ler a sua crônica de hoje. Estas memórias não lineares. Mas como sabe, sou prolixo, e não conseguirei acabar a carta aqui. Clesio era apaixonado pela poesia do Drummond, e certa vez leu e releu e algo o tocou profundamente para escrever seu "Revelação". Numa entrevista, ele confidenciou que um poema de Drummond o fez escrever estes versos que anos mais tarde seriam cantados por todo o pais.

O que o motivou, o tocou, o inspirou, foi o poema Memórias:

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Então é isto. Sua crônica de hoje me fez viajar nestas memórias. Eu espero que seus muitos leitores experimentem uma catarse de memórias ao ler e reler sua crônica.

Um abraço!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, oito de maio de dois mil e vinte e um

Caro Paulo,
os regalos que traz a esse blog são sempre preciosos, emocionam e surpreendem. Gabo é um universo sem precedentes. No início da pandemia (lá em 2020) eu finalmente li Amor nos tempos do cólera...que obra! Não me recuperei até hoje, Paulo!
E Drummond é essa cura diária, cujos poemas, ao menos um, leio dia sim e dia não. Tem sido a minha oração mais sincera e resistente. Sou devota deste Carlos.
Mas a surpresa do dia é mesmo Clésio, conhecia o poema na música do Fagner (este indivíduo controverso que prestou grandes homenagens à literatura, musicando Floberla Espanca, Ferreira Gullar, Francisco Carvalho... É bom saber de Clesio de Souza Ferreira, agora.

Muito obrigada pelas visitas, partilhas e regalos tão generosos. A gentileza é um afeto tão necessário, Paulo. Obrigada por me oferecê-la sempre.
Abraços,
Amanda