Sem margens, vasto, desconhecido e profundo; queria eu. Mas sou a queda intermitente; o abismo só me tem de vez em quando. O vazio, o nada, o infinito não chegaram ainda e, no meu caso, suspeito que não cheguem. Por andar pelas margens, por viver no limbo, os limites não são evidentes, tampouco sou infinita. Estou mais para o desconhecimento, a incompletude, o quase ainda do que para o definitivo da queda.
Um samba não terminado, um crochê pelo meio, guardado rapidamente com as agulhas nas costas no cesto que será retomado quando voltar a chover, uma página de palavras cruzadas no sofá ao lado do gato; um intervalo, um sempre antes do fim.
Ela não, ela está preenchida de nada e eu tenho inveja do seu abismo.
Caminho diariamente, ou quase, pela mesma avenida há dez anos, doze
talvez. O nome é o mesmo, poucas mudanças na rota e pequenas
transformações urbanas que acompanho: casas amarelas com varanda, que depois de demolidas dão espaço aos prédios cinza e branco, sobrados com os quais eu sonho numa noite e na manhã seguinte desmoronam. É inevitável e um pouco triste, as casas são sempre muito mais bonitas do que os prédios. Nessa inequívoca caminhada conheço gentes, de cumprimentos rápidos, sorrisos retribuídos e raramente algumas palavras trocadas. Tenho pressa e eles sabem, vou com um fone de ouvidos e eles respeitam a minha música. Envelheço certamente e me abandonam eventualmente alguns desses conhecidos. Às vezes sofro por dias, procuro por suas presenças, mas passam, porque são menos constantes do que eu ou porque precisaram partir.
E, agora, tem essa recém-conhecida que parece voltar do trabalho quando o nosso encontro acontece, metros antes de ela alcançar a praça e metros depois de eu ter passado por ela. Ela volta e eu ainda estou indo. Todos os dias ela tem uma lata de cerveja numa das mãos e na outra um cigarro. Nos cinco dias da semana em que eu a vejo ela bebe e fuma tranquilamente.
Nesses últimos meses me causa arrepios encontrar com alguém que não usa a máscara como deve ser: protegendo nariz e boca. Mas com ela é diferente. Todos os dias, quando eu corro por saúde e costume, ela bebe cerveja e exala a fumaça que já passeou pelos seus pulmões. Tem um olhar de abismo a mulher que me encara. Não é melancólico, mas é profundo, não é de passagem; os olhos delas fincam e ficam.
Eu corro há mais de uma década me preparando para a década seguinte; que chega e o mais sensato agora é estar em casa. E então eu encontro essa profundidade que goza dos seus dias sem economias para anos seguintes. No meu bairro, na avenida que já é mais minha do que desse engenheiro homenageado com placa, eu encontro essa inteireza que aposta tudo no começo de todas as noites.
Um cigarro e uma cerveja após o trabalho diariamente. Um cigarro e uma cerveja nesses dias que não sabemos se ainda se repetirão mornos por muito mais tempo.
Parece que estamos cumprindo pena, junho começou ontem e já acaba na semana que vem. Nenhum pavão misterioso na esquina, nada que alimente a ideia de que eu só estou presa no labirinto e que em pouco tempo eu encontro a saída.
Sei dizer não. Também sei não ir sem me justificar. Deixo as roupas molhadas na máquina sem estender por um dia e ninguém vai me dizer que sou descuidada por isso. Minha mãe, virginiana, não aprovaria isto nem a xícara com resto de café dentro da pia. Mas eu sei conviver bem com imperfeições. Mas correr todos os dias, imaginando que é um investimento possível, é a minha impossibilidade de ser o invejado abismo.
Faço planos, acho que logo passa num dia e no outro acho que não termina. Mas a mulher com a cerveja e o cigarro, ao menos nessa passagem diária, não pensa nem que sim nem que não; só está.
A cerveja e o abismo, a inteireza e o cigarro; esse pequeno delito público é a diastema na arcada de dentes muito alinhados, é a escoliose discreta na coluna da bailarina, é a chave que não entra na fechadura de primeira. A cerveja e o cigarro sem máscara são os riscos que a mulher-abismo não teme, só aposta.
Queria eu ter a inteireza de um abismo, mas amanhã acordo cedo, coloco o tênis e me entrego no máximo à queda. Sábado e domingo eu não a verei, estarei preparada para o seu olhar de segunda? Não sei, mas vou. Queria eu ser o abismo de alguém como ela é o meu, quando me lembra que o depois nem sempre é longe.
2 comentários:
Minas Geraes, findo outono da safra 21
Querida Amanda,
Que musicalidade é esta?!?! Arranjo belíssimo. Puxa vida. ...ao ver que me ouvidaste ...
Bueno, voltemos ao texto.
Assim disse Amanda "Queria eu ter a inteireza de um abismo".
"Mas ela é diferente" ...
Lacan, se não olvidei, afirmou que "basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, é a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”
Sua crônica propõe a tríade de exigência para o estádio do espelho, com as chaves clássicas do reconhecimento e do Desejo, citadas ao longo do texto. A concomitância do Imaginário com o real e o simbólico.
A moça da caminhada se identifica coma moça da cerveja/cigarro de uma forma genial. Olha - ela sou eu, e isto em irrita profundamente, teria pensado em determinado momento. "Ela está preenchida de nada e eu tenho inveja do seu abismo".
Ler Amanda é muito bom!!!
Um abraço!!!
Minas gerais, 16 de junho deste ano que nos ensina que a vida nos surpreende sempre
Caríssimo Paulo,
e não somos todos reflexos de outros e outras e eles/elas não são também reflexos nossos? Eu invejo o que já tenho, eu recuso o que também é meu...que simples somos e que complexidade tem isso!
É bom ler Paulo também, é bom pensar a partir das suas reflexões. Que bom que ainda consegue passear e prosear por essas bandas!
Abraços
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