terça-feira, 13 de julho de 2021

O cão que não late é o que me devora

   Estava há pelo menos quinze minutos amarrado ali. Eu sei porque eu marcava exatamente a metade do meu itinerário de caminhada quando os meus olhos pararam nos dele. Rosto fino, caramelo, como outros cães caramelos que eu já vi pela cidade. Mas tinha olhos parados, em uma ausência de movimento que se assemelha, de certo modo, a uma suspensão nossa de quando não sabemos que caminho seguir. Não como uma indecisão, de fato, mas um cansaço de luta, como se caminhar mais talvez não nos levasse a nada.
  O cão tinha esse olhar; não era dúvida, era entrega desesperançada. Não lutava contra a coleira que o prendia, não reclamava por melhor lugar que aquele, embora estivesse quase espremido entre as rodas metálicas dos carrinhos do supermercado. Era um cão em espera; talvez aguardasse por nada.

  Um cão a não esperar nada. Sem medo que o dono não volte, sem pedido de cafunés na cabeça, sem gracinhas para as crianças que tomavam sol na mesma calçada em que ele. Um cão que não abana o rabo festivo para crianças tão próximas é de se suspeitar. Um cão que não se incomoda com as pernas amarelas de sol dos transeuntes é de causar estranheza. Um cão que não abre o peito e solta a voz contra o barulho das motos na avenida surpreende. Um cão que não quer agir sobre o mundo me assusta.
 
  Minutos depois entro no supermercado, já na volta da metade da caminhada, dois quartos de itinerário vencido, interrompo para comprar azeite e água sanitária.  Eu fui e voltei e o cão ainda está. Continua preso à sua suspensão de cão que espera sem saber o quê; que aguarda, mas parece não requisitar nada do mundo agora. 
  Caminho entre as gôndolas do mercado e o trago comigo, não fisicamente, porque não permitem, mas a sua solidez de cão perdido, desesperançado num domingo. Talvez quisesse que ele latisse, que incomodasse, que despertasse a irritação da dona da farmácia ao lado ou que trouxesse as crianças para mais perto, porque simpático, elas não resistiriam. Mas o cão é triste, o cão é quieto, o cão não se move como um cão.

  O que pensa o cão de olhos tristes? Ou o que sente o cão caramelo que não late? Não teme, porque eu reconheço o medo canino, não está irritado, porque eu farejo o humor ruim de um cão num dia. Não parece amigável, mas também não parece que se soltará da corrente, como um grito da garganta e nunca mais será pego. É um cão que olha, mas não observa o mundo, entende? Um cão que não interroga a sua natureza nem destino. É um cão que também não está despreocupado, num banho de sol, às vésperas de um almoço dominical. Eu amo os cães. Eu amo o desassossego e a quietude; eu amo a entrega e a resistência; mas no domingo eu tive a compreensão por um cão. 

  Andava contente com short laranja, boné azul e um gosto de iogurte de morango, ainda recente, na boca. Eu tinha tomado iogurte sob um raio de sol no tapete listrado da sala. E vendo as listras, o sol nas minhas pernas, o rosa industrializado do meu iogurte, eu senti um contentamento que não tinha nem por quem nem onde. 
  Mas então o cão desbota o rosa do meu domingo e avança no meu contentamento distraído. O cão também está relaxado, mas sem o contentamento. O cão também me olha, mas parece não mudar o seu destino a partir de mim; só eu que me mudo.
  Com o azeite nas mãos, penso se o rosto do cão não reflete a desolação do seu dono. E se ele estivesse assim porque foi atingido por um mesmo golpe que a mão que o trouxera? 

  Nos corredores do supermercado procuro indícios de um dono, um tutor humano para aquela dor canina. Como será o outro lado da parceria? Eu desejo saber quem é a mão, o guia ou o conduzido. Começo a investigação discretamente, olho alguns rostos, busco por acessórios nas mãos, um brinquedo, uma coleira, uma tatuagem que lembre o animal, alguma pista nos carrinhos atravessados pelos corredores. Alguém a quem eu pudesse falar sobre a tristeza do cão ou quem sabe constatar semblante parecido. 
  A mulher de cabelo arroxeado talvez seja uma boa companhia, mas não sei se a sua personalidade, que parece mais expansiva, se adaptaria a um cão com tamanha inflexibilidade. Ela passa pelo caixa rápido, guarda a carteira, sai do mercado e logo atravessa a rua. Não é ela.  
  Mas encontro um homem com roupa de ciclista, com coque no alto da cabeça e produtos naturais no carrinho; nenhuma cerveja, nenhum chocolate, mas tem cacau em pó. Não vi café também. Talvez seja ele o par do cão lá fora. Andou de bicicleta mais cedo, depois de comer uma tapioca e meio mamão papaia e veio agora trazer o cão para um passeio, mas se lembrou que precisa preparar sua refeição de segunda-feira; não come em restaurantes, o homem, e precisou vir ao mercado. Mas o homem também sai e não leva o cão.
  Uma adolescente de moletom amarrado na cintura  e máscara no queixo esbarra o seu carrinho na minha perna e não me pede desculpas. 
  - Que não seja ela a dona do cão.
  Eu quase rezo. Não simpatizei com a moça e eu quero que a melhor pessoa desse supermercado seja aquela que acolherá a desesperança do cão. Ela também sai do mercado e nem olha para direção em que o cão está.

  Há quinze minutos eu seguro uma garrafa de azeite, prescrutando as galerias. Não bate sol lá dentro e eu tenho um banheiro para lavar. Quero saber quem o cão tem, mas não posso mais esperar que alguém se apresente. Talvez se eu pedisse para anunciar:
- Por favor, dono do cachorro triste lá fora se apresente para a mulher que veio comprar azeite e água sanitária e não suporta olhos melancólicos de um cão no domingo de manhã.

  Não faço. Também não estou para latidos hoje, não depois de lamentar por um cão sem ilusões. O cão que não late é o que me devora. Se latisse, assustaria bem menos. Se avançasse, se me mostrasse os seus dentes, mas o cão não tem o sangue fervendo agora. Se o cão me olhasse com o pescoço um pouco virado e uivasse, pedindo afago eu daria; mas o cão não quer amor hoje. O cão não acredita em afeto algum nesta manhã de domingo.
  Não me guarda, não me afasta, não me morde. O cão devora a minha sensação de alegria no domingo. Terei eu o direito à felicidade, se um cão, um magrelo cão tem nos olhos o nosso aniquilamento social? Sei não. Teve jogo, teve churrasco na casa ao lado e eu me culpo por um copo de iogurte tomado com alegria rosa de domingo. Cão, cão, cão, se você latisse, mas você não late, cão; você é o meu domingo real.


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