
O cão tinha esse olhar; não era dúvida, era entrega desesperançada. Não lutava contra a coleira que o prendia, não reclamava por melhor lugar que aquele, embora estivesse quase espremido entre as rodas metálicas dos carrinhos do supermercado. Era um cão em espera; talvez aguardasse por nada.
Um cão a não esperar nada. Sem medo que o dono não volte, sem pedido de cafunés na cabeça, sem gracinhas para as crianças que tomavam sol na mesma calçada em que ele. Um cão que não abana o rabo festivo para crianças tão próximas é de se suspeitar. Um cão que não se incomoda com as pernas amarelas de sol dos transeuntes é de causar estranheza. Um cão que não abre o peito e solta a voz contra o barulho das motos na avenida surpreende. Um cão que não quer agir sobre o mundo me assusta.
Minutos depois entro no supermercado, já na volta da metade da caminhada, dois quartos de itinerário vencido, interrompo para comprar azeite e água sanitária. Eu fui e voltei e o cão ainda está. Continua preso à sua suspensão de cão que espera sem saber o quê; que aguarda, mas parece não requisitar nada do mundo agora.
Caminho entre as gôndolas do mercado e o trago comigo, não fisicamente, porque não permitem, mas a sua solidez de cão perdido, desesperançado num domingo. Talvez quisesse que ele latisse, que incomodasse, que despertasse a irritação da dona da farmácia ao lado ou que trouxesse as crianças para mais perto, porque simpático, elas não resistiriam. Mas o cão é triste, o cão é quieto, o cão não se move como um cão.
O que pensa o cão de olhos tristes? Ou o que sente o cão caramelo que não late? Não teme, porque eu reconheço o medo canino, não está irritado, porque eu farejo o humor ruim de um cão num dia. Não parece amigável, mas também não parece que se soltará da corrente, como um grito da garganta e nunca mais será pego. É um cão que olha, mas não observa o mundo, entende? Um cão que não interroga a sua natureza nem destino. É um cão que também não está despreocupado, num banho de sol, às vésperas de um almoço dominical. Eu amo os cães. Eu amo o desassossego e a quietude; eu amo a entrega e a resistência; mas no domingo eu tive a compreensão por um cão.
Andava contente com short laranja, boné azul e um gosto de iogurte de morango, ainda recente, na boca. Eu tinha tomado iogurte sob um raio de sol no tapete listrado da sala. E vendo as listras, o sol nas minhas pernas, o rosa industrializado do meu iogurte, eu senti um contentamento que não tinha nem por quem nem onde.
Mas então o cão desbota o rosa do meu domingo e avança no meu contentamento distraído. O cão também está relaxado, mas sem o contentamento. O cão também me olha, mas parece não mudar o seu destino a partir de mim; só eu que me mudo.
Com o azeite nas mãos, penso se o rosto do cão não reflete a desolação do seu dono. E se ele estivesse assim porque foi atingido por um mesmo golpe que a mão que o trouxera?
Nos corredores do supermercado procuro indícios de um dono, um tutor humano para aquela dor canina. Como será o outro lado da parceria? Eu desejo saber quem é a mão, o guia ou o conduzido. Começo a investigação discretamente, olho alguns rostos, busco por acessórios nas mãos, um brinquedo, uma coleira, uma tatuagem que lembre o animal, alguma pista nos carrinhos atravessados pelos corredores. Alguém a quem eu pudesse falar sobre a tristeza do cão ou quem sabe constatar semblante parecido.
A mulher de cabelo arroxeado talvez seja uma boa companhia, mas não sei se a sua personalidade, que parece mais expansiva, se adaptaria a um cão com tamanha inflexibilidade. Ela passa pelo caixa rápido, guarda a carteira, sai do mercado e logo atravessa a rua. Não é ela.
Mas encontro um homem com roupa de ciclista, com coque no alto da cabeça e produtos naturais no carrinho; nenhuma cerveja, nenhum chocolate, mas tem cacau em pó. Não vi café também. Talvez seja ele o par do cão lá fora. Andou de bicicleta mais cedo, depois de comer uma tapioca e meio mamão papaia e veio agora trazer o cão para um passeio, mas se lembrou que precisa preparar sua refeição de segunda-feira; não come em restaurantes, o homem, e precisou vir ao mercado. Mas o homem também sai e não leva o cão.
Uma adolescente de moletom amarrado na cintura e máscara no queixo esbarra o seu carrinho na minha perna e não me pede desculpas.
- Que não seja ela a dona do cão.
Eu quase rezo. Não simpatizei com a moça e eu quero que a melhor pessoa desse supermercado seja aquela que acolherá a desesperança do cão. Ela também sai do mercado e nem olha para direção em que o cão está.
Há quinze minutos eu seguro uma garrafa de azeite, prescrutando as galerias. Não bate sol lá dentro e eu tenho um banheiro para lavar. Quero saber quem o cão tem, mas não posso mais esperar que alguém se apresente. Talvez se eu pedisse para anunciar:
- Por favor, dono do cachorro triste lá fora se apresente para a mulher que veio comprar azeite e água sanitária e não suporta olhos melancólicos de um cão no domingo de manhã.
Não faço. Também não estou para latidos hoje, não depois de lamentar por um cão sem ilusões. O cão que não late é o que me devora. Se latisse, assustaria bem menos. Se avançasse, se me mostrasse os seus dentes, mas o cão não tem o sangue fervendo agora. Se o cão me olhasse com o pescoço um pouco virado e uivasse, pedindo afago eu daria; mas o cão não quer amor hoje. O cão não acredita em afeto algum nesta manhã de domingo.
Não me guarda, não me afasta, não me morde. O cão devora a minha sensação de alegria no domingo. Terei eu o direito à felicidade, se um cão, um magrelo cão tem nos olhos o nosso aniquilamento social? Sei não. Teve jogo, teve churrasco na casa ao lado e eu me culpo por um copo de iogurte tomado com alegria rosa de domingo. Cão, cão, cão, se você latisse, mas você não late, cão; você é o meu domingo real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário