segunda-feira, 19 de julho de 2021

A última tentativa é um cartaz de procura-se pendurado no poste

   Passou a manhã toda fora. Nem o viu sair. Deve ter ido muito antes que ela se levantasse. Não fez o mínimo barulho, porque ela não acordou, embora o sono levíssimo era sempre sacudido por essa partida. Seis e quinze, seis e vinte e, uma só vez, seis e cinquenta era o que marcava, quando ela visualizou na tela do celular, após ouvir a sua partida. Não vê-lo ao se levantar era comum, mas estava acostumada ao barulho, ao sinal diário da sua presença se dissipando.
  Uma manhã inteira sem notícias e começava a se preocupar; nada, nenhum vestígio da saída matutina, nem um sinal de que partilhavam uma vida juntos.

  Se preocupava, mas tentava racionalizar a liberdade que devia ao amor. Ela mesma, em todas as suas relações, reivindicava a amplitude. Agora, estava há três horas entre preocupada e aborrecida pela ausência desacostumada, instalada na casa. 
  Continuava os trabalhos, mas vez ou outra perdia a concentração, pensando nessa silenciosa e demorada partida. Quando volta? Onde está agora? Terá que chegar em algum momento. A casa, as suas coisas, as rotinas que construíram juntos; tudo isso é alguma coisa. Tudo isto é motivo para um retorno.
 
  Parou o trabalho para o almoço, mas nem desligou o computador, tem relatórios atrasados e vai limitar em meia hora o seu intervalo. Lava o arroz, coloca a panela em cima do fogão, liga o fogo, coloca o óleo, sal, alho; e a casa já começa a ter o aroma convidativo do meio-dia. Se ele fosse criança, ela saberia que já estava próximo o seu regresso. Porque era assim na infância, quando a necessidade inadiável da fome se aproximava, era hora de ir para casa. Mas não é mais e ela sabe que ele às vezes come fora, sem avisos prévios. 
- Que vastidão de amor é esse o nosso.
Ela fala e se orgulha de não estar presa, tampouco prender. 
- É assim que deve ser.
Fala consigo, como um autoconsolo. 
- Não tenho que suspeitar de nada. É só saudade.

  Já almoçou, escovou os dentes, lavou a louça e nenhuma sinalização da outra presença. Volta ao trabalho e já começa a pensar que talvez a tarde também seja esse deserto desacompanhado  e inseguro. Concentra-se por mais minutos ao longo da tarde, mas eventualmente olha pela janela para tentar antever uma chegada. Ainda não, mais tarde também não e, de novo, ainda não. Já é final do dia e do seu home office e nenhum sinal de retorno.
  O orgulho agora é arrependimento, quase desprezo:
  - E eu aqui, boba, esperando o dia todo. Que ingratidão! Dou tudo o que tenho a ele, às vezes, até mais do que eu achava que tinha. Eu que garimpo as profundezas de afeto para doar a ele e fico sempre à espera de uma volta, agora. Antes revesávamos, ao menos. Várias, várias voltas minhas foram esperadas por ele, ali, naquela porta mesmo, era eu abrir e ele estava lá, se declarando devoto da minha companhia. Mas nos últimos tempos, sou eu quem fico. Sou eu quem me torno refém dos meus pensamentos. E se isso não for o bastante para ele? E se a amplitude partilhada nos deixar num fio muito tênue, sempre prestes a desabarmos?

  Já tomou banho, preparou o jantar e ele não retornou. Agora tem menos raiva e mais mágoa. A demora a deixa triste, desconsolada de certezas, desamparada da segurança que tinha até ontem. Porque pensou que era o seu afeto mais real, abnegado e selvagem. Um afeto que não requisitava treinos, normas, documentos ou promessas. A relação que se expandia, sem deixar que se perdessem, que permitia que saíssem pelo mundo e voltassem a ser dois, mais tarde.
  E essa é uma mágoa inconsolável, achar que se enganou, quando se sentiu amada. É a queda de uma peça na fileira de dominó, que sai arrasando toda a fila. Não há memória feliz que resista de pé.
E se nunca a amou mesmo? E se ser amada era um pensamento mágico que a afastava temporariamente da desordem que é a vida; e se a crença nesse pensamento fosse sua forma de burlar o despropósito que é viver?  
  Dar-se conta dessa possibilidade é derrubar uma imagem de si mesma. É arrancar do espelho a pessoa que se acreditava ser e ter que desenhar outra às pressas ou aceitar o apagamento provisório até ter forças para deslizar o grafite sobre o papel, de novo. 
 
  Já se prepara para dormir e não tem notícias ainda. Enquanto arruma a cama para se deitar, começa a procurar vestígios daquele amor. Algo que ele tenha deixado, qualquer pista que a leve a acreditar que ele existiu sim. Liga o computador e procura fotos. A figura está lá. E como é bonito e como é maravilhosamente encantador e como e como e como. 
  Começa a chorar desesperadamente, quer gritar, mas há uma secura na garganta que prende a voz, puxa os cabelos, sente uma dor imensa no peito e talvez seja ela; seja só dela esse amor. E se for assim não tem remédio. Não há como dividir o que só é dela, não há possibilidade de uma transferência; não há como suplicar por amor, presença física sim, mas amor não. E ela quer tudo, não é só a companhia é o corpo do outro em seu estado mais puro, mas também a sua disponibilidade de alma sem anteparos. Ou é isto ou é mesmo aceitar essa aridez solitária, esse dia sem olhos estrangeiros sobre a cultura da aldeia dela, essa ausência de prospecção das suas profundezas mais valiosas.
 
  Troca de roupa e sai sozinha pelas ruas do bairro, pergunta para os vizinhos sobre o paradeiro dele, passa em frente a alguns bares e outros comércios, usa a lanterna do celular para iluminar algumas vielas e becos, mas nada. O amor não parece disponível para ser encontrado agora.
  Volta para casa e  precisa de remédio para dormir. Corta a metade de um comprimido, mas engole as duas partes, com a água de um copo grande. A noite toda ela permaneceu sedada, afastada da preocupação de ter que existir de um outro jeito, apartada da ideia besta de nunca mais tê-lo ou vê-lo.
  Na manhã seguinte, chora ao acordar da dormência dos pensamentos. Procura por ele em toda a casa, mas ele não regressou fantasticamente. Antes de lavar o rosto e fazer café, revisita as fotos da noite anterior e escolhe a que parece mais fidedigna. Recorta o cenário e destaca a imponente figura. 
Branquinho tem o seu rosto estampado no cartaz, que é distribuído no comércio local, entregue a transeuntes e colocado em alguns no postes de três das ruas principais. Uma foto do gato em uma pose clássica de felino destemido ao lado de um texto desesperado, que implorava por informações de Branquinho. Se eu o visse, teria dúvidas sobre se delação ou salvação. E se Branquinho quiser ser livre desse amor. E se Branquinho não souber o que fazer com tanto amor?

   A última tentativa é um cartaz de procura-se pendurado no poste. Este amor permite essa vulnerabilidade pública, porque tem a alegação da irracionalidade animal, saiu de casa e perdeu-se sem querer.
   Em pelo menos três casos esse gesto de busca não é condenado por indignidade: animais domésticos, crianças e pessoas idosas, com traços de senilidade avançados. Para todo o resto, a descrição na procura é o melhor caminho para a simulação de normalidade numa possível  volta ou o abandono definitivo da ideia de um resgaste. Branquinho não voltou para casa, mas as  tigelas de comida e água serão reabastecidas por muito tempo ainda. Dar ao amor a comida da qual ele não se alimenta.




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