O batom encarnado contorna os lábios finos dela, que tem um sorriso muito aberto quando circula pelo hall do prédio onde mora; parece alegre, mas tem raiva dentro dela. Demasiada raiva.
Leu muitos livros, mas não se lembra de quase nada do que leu. Cita autores, títulos, mas não parece ter sido atravessada por nenhum; nunca. Não se entregou ao atropelamento.
Fez muitas viagens, mas tudo o que conta sobre elas se parece com o mesmo olhar sobre aqui ou a partir daqui. Os destinos só mudam no passaporte. Ela parece nunca ter saído do próprio quarto.
- Tudo lá fora é mais barato.
Gosta de ostentar o sobrenome estrangeiro e abrevia o nacional. Contribui mensalmente com o dízimo da igreja, declara imposto de renda, está em dia com o imposto predial e territorial urbano e também com os impostos sobre a propriedade de veículos automotores; acha que a cidade é mais dela porque paga.
Ela tem indisposição matinal e enxaqueca se a empregada se atrasa porque o ônibus furou o pneu ou se falta ao trabalho na segunda, porque o filho passou mal.
- Para investir na educação dos filhos não tem dinheiro nunca, reclama que eu pago mal, agora para ir à praia e trocar de celular todo ano, tem. Prioridades!
Mas tem pena dela e doa roupas quase novas, alimentos quase na validade e o que foi caro na casa, mas precisa ser substituído.
O marido que só parece viril quando grita com a secretária, os filhos que são mal-educados bilíngues, xingam em português e em inglês, com sotaque britânico. A mãe que mal se lembra dela, mas não tem nenhuma enfermidade senil; é só a rara convivência das últimas décadas que impossibilitou novas memórias. O pai que não é mais vivo, mas deixou herança e pensão.
- Meu pai foi um herói desse país. É o mínimo que ele merecia, deixar a única filha em boa condição financeira!
Ela tem raiva dentro da carteira, da bolsa exclusiva, dos tênis importados que só a levam do apartamento para a academia do prédio, três vezes por semana. Tem raiva na planta dos pés também.
Ela dá a cesta básica de natal ao porteiro que votou no candidato dela e para o outro nada, porque vota em operário.
- Esse povo tem que apender!
É incorruptível, mas já pagou para o funcionário na alfândega deixá-la passar com a bagagem com o peso acima do permitido, pagou pelo atestado médico do filho para fazer a prova que a professora marcou exatamente para o dia da viagem em família e esqueceu na própria mala o roupão do spa que frequentou.
Consulta o tarô, fez o mapa astral, paga para que leiam a sua sorte na borra do café, consulta as previsões astrológicas do seu signo diariamente, já fez oferta para Iemanjá no último dia do ano, frequentou um terreiro muito conhecido na cidade, mas tem pavor que a escola dos filhos aborde diversidade religiosa. Ela tem raiva dos deuses que não a protegem.
A melhor amiga é fofoqueira, a irmã é traiçoeira, a vizinha é puta, a professora da filha é burra, a empregada é preguiçosa, a presidenta é anta, a deputada é ladra, a mãe é ingênua, a desconhecida é invejosa. Não confia em ginecologista mulher, motorista mulher, cabeleireira mulher. Não é feminista é feminina.
- Todas as vidas importam.
Tem culpas, mas não tem remorsos. Tem raiva e grita. Tem raiva e acelera o carro. Tem raiva e faz aula de tiro. Tem raiva e para isso não tem cura. Ritalina durante o dia e zolpidem para a noite.
Domingo pela manhã, veste a legging verde e a camiseta amarela, vai caminhar ao lado dos homens de bem do seu convívio - e mulheres também, se forem as esposas desses homens - , depois do treino. Tem raiva e sorri. Fazem uma manifestação de desacostumados, alguns cartazes coloridos, vozes dissonantes que insistem em alguma paródia de axé e saem em busca do inimigo oculto.
Na praça, um grupo de artistas apresenta uma performance. Bailarinas enroscadas no tecido sobrevoam a cabeça dela. Corpos jovens, torneados, corajosos e livres estão acima da sua cabeça.
- Vagabunda! Vagabunda! Vagabunda!
Quando vê a artista circense - tão bonita a bailarina que voa, tão bonita - ela grita vagabunda. As mulheres voam e ela tem raiva. As mulheres rodopiam e ela tem raiva. As mulheres têm o corpo político e ela tem raiva. As mulheres olham para o futuro e ela tem raiva de só enxergar passado.
A boca encarnada grita e as mulheres continuam dançando no ar.
Depois de ter se inflamado, ela é acalmada pelo seu grupo e segue atrás de outro inimigo. Na praça em que as bailarinas sublimam a arte, cinco crianças cantam uma música que também é a minha infância.
Uma menina está com os olhos tapados por outra que pergunta:
- Caiu no poço, quem te tira?
A menina de olhos fechados responde:
- Meu bem.
A intelocutora continua:
- Pêra, uva, maça ou salada mista?
A raiva não pode parar a infância. Vai ter beijo na praça e a mulher que passou só sabia raiva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário