domingo, 8 de agosto de 2021

Da próxima vez que eu ver o mar

   Então eu ficarei algumas horas na areia, contemplando, sentindo as ondas sem entrar na água, sem querer entender ou dar nome a qualquer coisa. Vou me aproximar lentamente, farei um caminho de muito tempo, sem pressa, sem urgência. Sem querer toda a água e todo o prazer guardado  por meses.
  Ouvir o mar, alcançar as vozes que só ele tem, sentir os cheiros e todas as lembranças que eles trouxerem, fechar os olhos e deixar a pele sentir o sal, o sol, o vento que em nenhum outro lugar me atravessa. Isso tudo antes de cruzar a margem é o que eu farei da próxima vez que eu ver o mar.

  Da próxima vez que eu falar de ti, não terá mais mágoa, dor ou dúvida. Depois de ter finalmente me afastado da ilha e tê-la visto distante, já é diferente o sentimento. Nem dor nem indiferença, há ternura e também fim.
  Meu próximo pensamento sobre você já virá curado. Sem latências, sem sangue a ser estancado, sem nenhuma dor fresca; o próximo pensamento já virá cicatrizado. Quando eu pronunciar seu nome de novo, se precisar fazê-lo por qualquer motivo, algum dia, não será tremido, agarrado, nem entre soluços. Tampouco o seu nome será como uma palavra qualquer - cadeira, lápis, chávena, janela - mas será um nome distante e ameno, um amoroso, quase apagado, como o nome de uma professora dos anos iniciais, de uma amiga do ballet aos sete anos ou de uma vizinha que oferecia biscoitos de nata, quando eu levava as roupas que a minha mãe costurava para ela. Da próxima vez que eu souber de ti, eu não fingirei que não sei quem é.

  Da próxima vez que eu atravessar a rua eu não hesitarei. Não prometo coragem, porque o medo também me acompanha, mas vou com passos muito colados à terra, muito certos de furarem o chão. Não há outra maneira de fazê-lo se não for com dúvida sobre se é o lado certo, mas cheia de certezas de que é preciso escolher algum. 
  Quando eu puder sair de casa de novo eu não ficarei imóvel, esperando que alguém me aponte o caminho. Eu mesma lerei o mapa, traduzirei as placas, obedecerei as cores dos semáforos  e abandonarei angústias alimentadas como se fossem um gato que só vem à casa quando tem fome. 
  A próxima travessia será outro começo, mas sem o sensação de não ter nada; agora eu sei, eu sempre tive muito, mesmo que fossem ausências, já era ter.

  Quando eu voltar a me pertencer, não me economizarei em mim, tampouco liquidarei a qualquer um, como numa banca de quermesse. Vou escolher um par para dançar e talvez não fique com ele a noite inteira. Mas vou gastar com ele os solados do meu sapato, os sussurros da música que cantarolo, enquanto danço e os meus sorrisos, que se multiplicam ao longo das notas sapateadas. 
  Da próxima vez que eu me escolher como companhia, não me limitarei aos diálogos internos, estarei aberta a outros interlocutores, embora nunca deixe de também me ouvir. Partilharei o pão e a palavra, o gosto e o gesto, o desejo e o pudor com um ou mais, ouvindo música, bebendo vinho e falando a verdade.
  Quando eu voltar a ser minha eu poderei escolher com quem dividir o que é meu, sem ficar mais pobre no acaso da permanência.

  Quando eu puder ter as mãos vazias, de novo, talvez eu voe ou dance ou acene ou tudo isto em sequência. Quando eu voltar a sair sem documento de identidade com foto, sem as chaves de casa, sem as vitaminas em cápsulas, sem o álcool em gel, sem a máscara reserva, sem as listas de compras, de tarefas, de tudo o que devo evitar agora, talvez eu caia em todos os abraços dos quais precisei desviar neste tempo.
  Quando eu puder bater a campainha na volta, talvez chegue embriagada e quem me receba vai ter a paciência do café forte, do banho morno e das roupas limpas. Quando eu puder não ser só um número com filiação, uma saúde com suplementos artificiais e uma bolsa com listas, eu vou levar somente as duas poesias decoradas em outro tempo e as ideias que saem sem freios da minha boca.

  Na próxima manhã eu vou acordar com esperança, se tiver sorte, fé eu tenho. Toda essa angústia, que antecede à entrada no navio, se dissipará com a corrente solta do ancoradouro. Talvez tenha náuseas, talvez passe por tempestades em alto mar, mas a angústia da quase ida não poderá me alcançar mais.
  Ao despertar desta noite, na qual terei sonhos, acordarei revigorada e esperançosa; não pelo sol brilhando porque não é época dele nem pelo amor porque não é escolha, mas por ter vivido esse tempo e passado por marolas e tsunamis inacreditáveis.
  Da próxima vez que eu acordar, me lembrarei da promessa de continuar a navegar. Não paro, não paro, não pararemos.

  Quando eu voltar ao mar, manterei as urgências no continente e farei o meu mergulho magistral na imensa água sem dono. Vou esquecer Minas por algumas horas e inventarei ser marítima. Talvez possamos vê-lo juntos, mesmo que estejamos em dois litorais antagônicos. Partilharei do mesmo mar contigo, sem sabermos.
  Da próxima vez que eu ver o mar, vou me lembrar da primeira vez que o vi, mas não vou tentar repetir o primeiro sentimento; darei outro. Entregarei ao mar o que é novo em mim em relação a ele. Vou me enamorar de novo, mas de um outro jeito, sem colete salva-vidas, sem querer voltar logo à margem. Da próxima vez que eu ver o mar, vou mergulhar com toda a intensidade guardada para ele, mas nadarei somente até onde dar pé.



Nenhum comentário: