sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Para depois que virar a esquina, a casa de número novecentos e um

  Para o leite que ferve, paciência e concentração. Para matar bactérias, o fogo. Para limpar a leiteira, depois da fervura, saponáceo e esponja de aço. Para não estragar o esmalte da unha, luvas de borracha. Para não agarrar os dedos na luva justa, talco. Para não ressecar as cutículas com o excesso de mineral, hidratante com silicone. 
  Para temperar o almoço, alho-poró e cheiro verde. Para saciar a fome, mastigar devagar, enquanto ouve uma história ou se lembra de alguma. Para a visita que não veio, desculpa e até uma próxima vez. Para a visita que nunca virá, esquecimento e boa sorte.
  Para uma manhã que não vai bem, esperança que à tarde tudo melhore. Para uma tarde cinzenta, um bilhete encontrado dentro de um livro azul. 

  Para o entregador sem o número do apartamento que toca o interfone aleatoriamente, saber o primeiro nome de todos os vizinhos. Para antes de o gato chegar à casa, telas em todas as janelas. Para depois que ele chegar, aprender como um felino vive e, vez ou outra, imitá-lo.
  Para um bolo sem ovo, sorte. Para uma receita escrita, boa caligrafia e dois poemas no verso da folha, se a receita não tiver êxito terá a poesia.
  Para o que não alcança, a escada atrás da porta da despensa. Para o que a escada não pode ajudar, refletir se é mesmo para ser alcançado. Para não pensar em nada, Erik Satie Gymnopedie 1 até quando bastar.

  Para a faxina de sexta-feira, começar pelas coisas do alto: ventilador de teto, lustre, última prateleira da estante de livros, cortinas enquanto ouve Alceu Valença e a Orquestra de Ouro Preto nos fones. As plantas ficam na pia do banheiro para escorrer, depois de serem aguadas. Para as roupas finas, modo lavagem delicada na máquina e o lampejo  dos lençóis estendidos na grama, para quararem, um dia, num lugar que não existe mais.
  Para a saudade, o consolo de ter estado, tido, sido, vivido, encontrado. Um acordo de paz, um divórcio com a ajuda de intermediários, uma porta fechada, um número de telefone bloqueado, à primeira nota de uma impossibilidade de compreensão.
  Para a história do mundo, versões diferentes. Para cada versão escolhida, uma tomada de partido. Para nunca mais é muito radical, mas às vezes é o que pode ser. 
  
  Choro para o luto, que dói mais se é seco. Vontade de não abraçar mais ninguém depois do coração partido pela ausência. O infinito que às vezes parece acabar, mas volta sem anúncios. O choro que vai voltar, mesmo depois que o luto não for mais aparente. Para o dia de querer se mudar a qualquer custo de casa, de rua, bairro, cidade ou planeta; que quiser outro corpo, outra história, outros traumas que não esses, literatura ou cinema e depois a retomada de tudo aquilo que se é, mas de um jeito novo.
  Para a emergência, ligar para a primeira pessoa com quem sempre pode ficar em silêncio. Para uma notícia ruim, não segurá-la muito tempo sozinha.
  Para a ansiedade, meditação, plástico bolha ou esvaziar uma piscina. Para o tempo que tem, não pensar no tempo que não tem.
 
  Confiança para qualquer amor. Ainda há tempo para pedir desculpas, separar o lixo, parar de mentir, querer ser melhor e para levar uma criança pela primeira vez ao cinema.  
  Açúcar para as primeiras xícaras de café e licor de manga só se for por educação na casa da avó de uma amiga. Desistência quando não puder mais, persistência para quando acharem que não pode mais e resistência nova para o chuveiro, mas desligar antes a energia do banheiro e deixar os fios enrolados com fita isolante. 
 - Não vá morrer de maneira estúpida.
  Para o sonho da noite, três opções: contá-lo a alguém, associá-lo a um bicho e tentar um dinheiro no jogo ou se esconder do que ele pode revelar. Para o sonho dos dias: tentar realizá-lo, dividi-lo com alguém ou tentar se esconder do que ele pode ser, se realizado.
 
  Sapatos vermelhos para ir ao centro, iogurte de morango com cereal no café da manhã, quatro episódios com Lucille Ball, depois do almoço e uma xícara a mais de cappuccino no café da tarde para melhorar o humor. 
   Batidas na porta da frente, é o zelador; eu bebo um pouquinho de chá e ele ri, analisa o vazamento do meu banheiro e diz que vou gastar mais trezentos reais esse mês. Para os imprevistos, a vida inteira. Para os planos cuidadosamente listados, uma corrente de ar vinda do norte.
  Sapatos velhos para caminhar no mangue, chamar um cachorro pelo nome e pedir desculpas se pisar na pata dele sem querer. Meu pai de um lado, meu avó de outro, eu no meio e meu irmão fazendo a foto. Não sei onde ela está agora e não importa. Eu ainda estou lá.

  Para uma sucessão de golpes, tristes trópicos. Para renascer uma esperança, inspirar-se em quem já se levantou um dia. Não duvidar que a maldade existe, mas também não acreditar que é só ela quem ganha. Para uma vida tranquila, entregar-se às ondas; para uma vida sobressaltada, aprender o impulso da onda para chegar ao continente antes de perder o fôlego.
  Para hoje, ouvir Nina Simone e lembrar do que ela dizia sobre se levantar da mesa quando o amor não é servido. Reassistir às entrevistas da Nina Simone e da Clarice Lispector e sentir espanto e identificação num mesmo tempo. Para depois que encontrar a casa de número novecentos, virar a esquina e seguir até a novecentos e um. Não tem final; nem texto nem caminho.
 



4 comentários:

Bel disse...

Lindo texto!

Amanda Machado disse...


Linda você!Que ainda vem, vê, lê e encontra beleza.
Gracias

Paulo Abreu disse...

Minas Tardia, 18 agosto 2021

Amanda
Cronista das almas

Comecei a ler este texto hoje cedo. No princípio encantei com a delicadeza das completitudes, mas fui aos poucos sendo tragado pela mística escrevivência que partilha entre as coisas postas e as coisas alcançáveis.

Escrevivência é um neologismo da profª mineira em terras cariocas, Conceição Evaristo, uma das intelectuais mais atuantes na valorização da cultura negra neste país hora à mercê da sorte. Para Conceição, “escrevivência” é a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida.

Vi/li também na sua crônica a citação a Erik Satie, e fui atrás, não sabia da persona, mas ao ouvir a obra, caramba, sempre soube dela. Acabei aprofundando na pesquisa e descobri que foram - são 5 - feitas baseadas num poema do poeta ibérico J.P. Contamine de Latour. Mas aí a história fica interessante e longa.

Ler suas crônicas nunca é um processo simples, sempre tem descobertas, sinais, códigos transversos ou reversos.

Emocionante!!!

Um abraço!!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, dia 18 de um agosto gelado, de 2021

Caro Paulo
leitor generoso e interlocutor dos meus textos e pensamentos não escritos

A Gymnopedie 1 é um amor antigo, que chegou sem referências - em uma época que encontrá-las era um pouco mais difícil do que atualmente. Portanto, só bem mais tarde conheci a história do artista que a concebeu (um colecionador de guarda-chuvas e lenços, que se despediu da vida em meio a miséria material, bastante comum aos grandes artistas. Além do seu caso amoroso - que após o fim o deixou despedaçado - com outra artista genial: Suzane Valadon). Enfim, um emaranhado de belezas fantásticas e humanidades muito próximas às vidas comuns. É bom partilhar isto também.

Grata pela visita, sempre cheia de ternura e boas questões para pensar, Paulo.
Abraços,
Amanda