quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Quando eu voltar à cidade, seremos outras

  Guardei uma cidade para um tempo em que eu pudesse vivê-la novamente. Guardei as suas ruas íngremes; os cheiros que ela exala depois das seis, de amendoim com chocolate, pipoca, dama-da-noite e combustível e as suas pessoas, andando com sapatos de solados gastos e agarrando os saltos nas calçadas de pedras portuguesas, na esperança de tê-la, novamente, tal como foi embalada.
 Guardei uma cidade enrolada em plástico bolha, duas folhas de seda e uma de jornal, dentro de uma caixa de papelão e a coloquei na parte mais alta do guarda-roupa. 
  Embrulhei a cidade, mas não me esqueci dela. Tirava-a da caixa com regularidade, mas não por muito tempo, para que não perdesse o seu frescor e eu o tivesse de volta, quando pudesse libertá-la.
 
  Guardei a cidade encrustada em um vale e o seu clima instável. Em um mesmo dia, era possível eu abrir o guarda- roupa e ser surpreendida  por um raio de sol ou uma lufada de ar frio e, mais tarde, molhar as mangas da camisa na água gelada que escorria da caixa.
  Guardei seus dias frios, de chai com amanteigados de uma cafeteria no Centro, os sucos de maracujá com água de coco nos dias quentes e as promessas de felicidade que cabiam entre um gole e outro de qualquer bebida. Guardei as casas nas quais eu morei e também nas que eu morarei, só a que moro não coube dentro do plástico e nas três folhas de papel. Guardei a cidade para que não perecesse a minha memória, para que o isolamento não apagasse a história que eu escrevi com os meus pés no seu chão.
 
  Escondi, dentro de uma caixa de papelão, uma cidade que me feria, que ardia os meus olhos, porque cada esquina me contava das perdas e dos meus desencontros; dos planos nunca cumpridos e dos jardins que não eram reais. Nos primeiros dias eu achei que pudesse recuperá-la; o tempo me daria a cidade de volta. Eu me neguei a olhar pela janela uma cidade que eu não poderia ter mais. Por isso eu a escondi, junto às cascas de mexerica que ficaram no cinzeiro, que eu coloquei atrás do sofá, quando bateram na porta.
   Escondi a cidade para que eu tivesse tempo de pensar no que fazer com aquilo que não se tem mais; com o vazio, o silêncio, o intervalo que talvez seja o fim, a ausência não justificada, a solidão forçada. Escondi dos outros o fracasso da minha engenharia, tudo desmoronado, nada que restasse em pé. Mas ocultei, principalmente, a constatação de que eu havia matado aquela cidade em mim.  
 
  Mantive uma cidade em cativeiro, mas não pedi resgate a ninguém. Ameacei mantê-la por indeterminado tempo no meu guarda-roupa, mas queria que ela se rebelasse e que gritasse por socorro ou perdão. Eu culpei a cidade por não tê-la como antes. Eu sequestrei a cidade, porque queria que ela não mudasse, enquanto eu não pudesse sair.
  Mas o guarda-roupa é menos alto e mais acessível do que deveria. Eu visitava a cidade escondida todos os dias e a cada instante uma parte dela parecia mais apagada. Mesmo guardada, a cidade mudava.
  Eu finalmente libertei uma cidade e, junto com ela, a mim. Abri a caixa, desenrolei as três folhas de papel, abri o plástico bolha, as portas e as janelas do apartamento.

  Perdi uma cidade e os seus músicos de rua, seus artistas de semáforos, a pastelaria rolante com o Sputnik no cardápio, a voz rouca do pastor do parque central, as pombas, os grilos, os ipês, o rio de água turva, a feira de domingo, as bicicletas, os táxis amarelos, as crianças com os cabelos recém penteados e dentes moles, as sirenes das escolas, os policiais e seus cavalos, motos, carros e coturnos encerados. Eu perdi os cafés, as águas com gás, os chopes, os goles que suavizam nós na garganta. Eu perdi dezessete meses de sol e de lua, porque dentro da caixa eles não me iluminavam.
  
  Mas nesse mesmo tempo eu não sabia que ganhava outra. Embora quase não saia de casa, ganhei uma cidade inteira. Com árvores, pessoas e cães. Com sons, temperaturas e impressões. Ganhei restaurante favorito e outro café. Ganhei sotaques novos, novos nomes de bairros e outras saudades. Uma igreja na esquina, outro mercado municipal e novas ilusões de jardins.
  Ganhei outras alamedas, encontros e fiz outros planos, enquanto a nova cidade se erguia sob a minha janela, no quinto andar. 
  Nesta nova cidade ainda há estranhamento e pouco costume, mas já a carrego comigo, embora nunca mais pense em caixas de papelão. 

  Nada, em cidade ou pessoa, permanece intacto por dezessete meses. Eu não sabia, mas toda vez que eu regressava à cidade, não éramos as mesmas. Nem por dezessete segundos. Que eu aprenda a não prender mais. Quando eu, finalmente, voltar à cidade, seremos outras e isso não pode parar.
 



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