quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Tão intensa quanto a chuva, tão efêmera também

  Afoga os dias mornos, refresca as tardes secas, apaga do ar a poeira, enche de água as corolas das flores, atravessa os itinerários, toma de assalto a roupa no varal e, depois, passa. 
  Encharca os campos, enche os copos esquecidos no quintal, carrega filas de formigas, apaga incêndios, limpa fuligens, destelha casas, ameaça desmoronamentos e acaba.
  Faz procurar o guarda-chuva no fundo do armário, faz desmarcar o encontro muito esperado,  assusta o vulnerável, mas encanta na segurança e vai embora.
  Tão destrutiva quanto redentora; tão pacífica quanto turbulenta. Exata e também vaga. Agora está e daqui a pouco não é mais.

  Tão selvagem quanto os gatos sob a minha janela e tão domésticos ao  regressarem para a casa depois da rotina noturna. Ronronam e logo se estranham; se cheiram e depois se atacam. Reconhecem-se no olhar um do outro - espelho tão imprescindível quanto insuportável.
 Não nutrem a vigília, querem escapar. Arrancam sangue e pelos, no escuro. Voltam aos seus donos com algumas feridas, mas nenhuma memória. Dormem durante todo o dia e já nem se lembrarão do duelo quando acordarem. Tão selvagem quanto os gatos, tão indecifrável também.
 
  Dois terços de leite integral e um de café em xícara esmaltada verde-água, pão doce com manteiga e biscoito de polvilho. Mesa com toalha florida, uma filha que nunca conhecerá o pai e amenidades que tentam desviar as ausências do desconhecimento. A mão com dedos longos mexe o leite com uma colherzinha de prata, tem as unhas pintadas de vermelho e pergunta como vão as coisas. Ela escolhe palavras que não desagradem a mãe, enche os espaços entre as duas de narrativas inspiradas nas lembranças de algum filme que assistia na TV, enquanto aprendia a ser sozinha.
- Você sabe, fui professora de matemática mais da metade da minha vida. Ensinava em três turnos, não tive muito tempo para fantasias e ternuras.
- Nunca me faltou nada, mãe. Juro.
  O cheiro de canela do pão, o silêncio entre os goles das duas, o eco do ponteiro do relógio de parede ao fundo e suspiros entrecortados pelo som da faca de pão. Tão doce quanto um sábado às cinco da tarde, quanto torturante também.
 
  Luto por três longos anos, mas interno, solitário. Porque há sentimentos que não podem ser compartilhados por muito tempo. Está corada agora, não chora mais quando falam dele e, por isso, parece que a saudade não existe mais. A perda pública se torna mais individual a cada passagem de tempo. Logo não terá existido mais para ninguém, embora para ela nunca acabe. 
  Os sonhos adiados tornam-se desistências; por que realizar sem ter quem a assista? Um porta-retratos e mais nenhuma lembrança visível. Quem vai saber que quanto mais distante o tempo, mais dentro a memória se instala? Mudou-se de casa - se pudesse teria ido para outro país - cor de cabelo, não visita mais os mesmos lugares, mas o luto a acompanha; menos denso, menos visível, menos trágico, mas não abandonado. Conta na terapia e parece pesar menos. Finalmente pode manifestar o luto de novo. Tão profundo quanto a saudade, tão acessível também.
 
  O dia já começa abafado, o ventilador quebrou, não tem parques abertos, não há segurança sanitária para frequentar lugares mais frescos hoje. Coloca um álbum do João Gilberto, abre as janelas do apartamento, corta o limão e procura um resto de vodca, enche uma bacia com água, coloca o guarda-sol e a cadeira de abrir na sacada. Sol nas pernas, caipirinha sob a sombra projetada e um livro, o qual lerá três capítulos antes de um cochilo longo. 
  Não há calor com praia, mas não vai morrer de vontade. Às vezes é uma aridez ingovernável, às vezes é só uma secura transponível. Não luta contra os estados de vazio e solidão interior nem os aceita completamente, mas se abre para o dia e tenta ser mais solar. Tão improvável quanto o oásis no deserto antigo, tão desejado também.

  Mais uma palavra plantada e perdida; mais uma resolução que aguarda maturidade para ser recolhida. Quando um pouco distante é capaz de enxergar as ilusões da ilha, mas quando está nela resiste muito em sair. Não terá braços para ir e voltar todos os dias, o fôlego há de trair os pulmões que requisitam constância. 
  Por enquanto, consegue mergulhar sem se afogar, logo não terá nem água nem continente. Reconhece a areia em que pisa, não há construções possíveis neste chão, então por que ainda fica? O vento, a paisagem, embarcações coloridas que assiste passar de longe a distraem da emergência de voltar ao mar. 
  Tão precárias quanto as promessas que faz à distância, tão urgentes também. Que uma onda maior a retire à força do sonho ou que ela mesma encontre a corrente boa que a levará de volta ao porto.

  Mesmo que o desejo seja de infinitude, que os planos tentem governar para as certezas e que as paisagens pareçam sempre as mesmas, a chuva vem, os gatos vão e voltam, as famílias nunca se conhecem plenamente, os verões não são sempre fotogênicos e as resoluções quase nunca brilham instantaneamente. Tão certa quanto a última frase, tão provisória também.
 



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