terça-feira, 21 de setembro de 2021

Embora ainda exista o mar

   Agora ele está a caminho do mar. Irá sem ela, sem o filho que tiveram juntos, sem a cadela que ele
trouxe da rua numa tarde, ainda pequena, e alimentava diariamente. Ele vai para o litoral e não levará as risadas  escandalosas dela, aos sábados pela manhã, os sonhos longos do filho narrados pela voz infantil com detalhes, enquanto servia mais café e pensava no trabalho que o esperava. 
  Ele vai ser um homem que acorda cedo e que vê o mar. Um homem que antes de sair de casa passa vaselina líquida nos eletrodomésticos para protegê-los da maresia e filtro solar setenta para não ter câncer de pele.

  Ele vai comprar uma rede e finalmente poderá pendurá-la em algum lugar fresco, sem se preocupar com os olhares dos vizinhos do prédio da frente; vai morar num lugar sem construções mais altas ao redor. 
  Vai  para o mar e se afastará ainda mais da casa que estava sempre por terminar - um novo quarto, outra área de serviço, uma escada para algum lugar que viria depois. E ainda deixará, sem dono, o jardim com rosas e arrudas que aprendeu a cuidar.

   Ele não reclamará mais do horário do almoço, tampouco da pimenta que ela gostava e ele não. Ele vai cozinhar para si e terá peixe sempre fresco; não vai mais acampar para pescarias de final de semana em água doce. 
   Ela não dirá mais que ele precisa se aproximar do filho, levá-lo a outro lugar que não seja um rio ou campo de futebol; não vai mais preencher as notas fiscais, escrever as listas de materiais de trabalho que ele precisa comprar para o dia seguinte; não vai mais explicar o telejornal que ele não entende e ela acha que domina.
  O menino não vai ter quem entregue para ele a direção do carro, sem habilitação, quem ofereça a primeira cerveja, ainda em casa, mas também não terá vergonha de não ser o estereótipo masculino que o pai desejava que ele fosse. Já deixou o cabelo maior até.
 
  E não é porque ele vai embora que ela está há quase uma hora na varanda em silêncio. Calculo o tempo da ausência de som, porque durante quase toda a manhã ela esteve desassossegada e falante. Ela esteve agitada e agora parece melancólica porque ele finalmente vai ao mar e ela não. 
   O futuro numa casa no litoral era sonho dos dois, ao menos eu ouvi isso. Era ela quem usaria um vestido largo, com estampas azuladas, e caminharia na orla todas as manhãs. Era ela quem levaria o filho para a escola, segurando a coleira da cadela na outra mão. Era ela quem compraria legumes, frutas, talvez flores e peixes no mercado e faria uma refeição sem mágoas. 
  Agora ele vai ao litoral e manda o recado pelo advogado. Ela ficará e não tem a quem avisar, porque a história de quem fica é sempre mais desinteressante.

  Nunca nos falamos, quando passamos uma pela outra ela abaixa a cabeça, não me cumprimenta. Nunca o fez. E quase tudo o que ela tem vivido nos últimos quinze anos eu sei. Nossas casas são quase coladas, ela fala alto e eu tenho a audição aguçada - é o que sempre me dizem e acho que não erram. 
  Depois que ele foi embora, derrubaram paredes, deram outra utilidade para a oficina de trabalho dele, pintaram a casa e ela parece terminada. A cadela ficou doente e a mulher passou a levá-la duas vezes por semana a um especialista. O filho, que gritava muito e batia as portas nos primeiros meses também passou a ver um especialista; agora fala baixo e nunca mais chorou alto pelo pai que, finalmente,  assumiu-se marítimo.

  Ele vai porque não há nenhum laço que o faça desejar ficar. Porque o seu sonho não precisa de um obstáculo burocrático como a paternidade, aviso prévio no emprego formal que nunca teve ou esperar que a mãe idosa, que não tem mais, se recupere de uma queda. 
  Ela fica porque não têm mais nada que partilhem juntos, nem o imaginário de noites de muito calor, refrescadas pelo mar, nem o vestido esvoaçante ou o beijo na bochecha salgada do filho no portão da escola. Ela fica porque a casa e o jardim, a mãe e os ossos, a cadela e os rins, o filho e a felicidade do filho são as âncoras da sua embarcação. O navegar-mulher é outro.

 Ainda que ele tenha o mar quando acordar, ela quando precisar do endereço para enviar uma cobrança da pensão nunca em dia e o filho se banhe nele nos sonhos, todos parecem perder muito.  
  Eu ainda me lembrarei dele ouvindo as risadas da mulher, os sonhos do filho, os latidos da cadela. Embora ainda exista o mar para ele, os sons da paternidade ficaram para mim. 
  Embora ainda exista o mar, perdem todos. Menos eu que tenho, na audição, a vidas pretéritas, presentes e a suposição das vidas futuras de cada um. Daqui eu também posso ouvir o mar, embora ele  não seja um destino para mim.


3 comentários:

Unknown disse...

margem mãe pai

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, Dia de São Francisco de Assis

Prezada Amanda

Escreveu uma crônica densa e tensa. Caminhou entre a razão e a emoção. Não trouxe à luz os porquês das causas e razões ou por quês das muitas dúvidas que aguardam e / ou pairam sobre nós.

Peregrinou no limite entre a causa/efeito e o desejo, convidando o leitor a tomar partido a partir da sua percepção do mundo e/ou dos seus desejos. Enfim, li aqui um texto carregado de simbolismos de expectativas e frustrações.

Lembrei agora de um filme que trabalha o limite deste drama universal - a causa/efeito e o desejo. Um filme tenso, que caminha para um final imprevisível aos olhos menos atentos ao outro.

O filme de 2008, cujo título original é Revolutionary Road, e aqui no Brasil teve a infelicidade de ser nomeado como "Foi apenas um sonho", foi uma total desfaçatez com o conteúdo e a mensagem proposta pelo diretor britânico Sam Mendes, que anteriormente, pela obra cult "Road to Perdition", tratava da relação familiar, havia concorrido a seis oscars.

Revolutionary Road trabalha com os sonhos e desejos das pessoas, e o perigo de expô-los sem fazer uma análise do terreno pantanoso que é a família.

Bem, adorei vir aqui, fazer estas conexões mentais e escreve-las para você. Não necessariamente estarão corretas, mas é o mais próximo que consigo chegar deste difícil tema no qual você brilhantemente postou.

Um abraço!!!


Amanda Machado disse...

Minas Gerais, quinto dia do mês de outubro de 2021 (um ano ainda pandêmico)

Caro Paulo,
esse texto é um pouco do que é a vida: encontros potentes, sonhos partilhados, separações, novos sonhos...e a roda recomeça. Claro que com recomeços possíveis, embalados pelas condições sociais (de gênero, raça e classe).

Esse filme...que lembrança maravilhosa e oportuna! Ainda sou capaz de ver o olhar da personagem da Kate Winslet, se apagando a medida em que se desenvolve a narrativa.
É sim...talvez essa crônica tenha um clima semelhante ao de Revolutionary Road. Muito boa a relação.

Bem, sou quem fico grata pelas leituras e comentários, que sempre ultrapassam e enriquecem a ideia inicial aqui partilhada.
Abraços, Paulo! Sigamos fortes!
Amanda