quarta-feira, 13 de outubro de 2021

É que ontem eu me lembrei do mar e quis entrar

   Nenhuma outra razão. Nada. Nem sonho dissipado nem fagulha apagada.Talvez a insistência é que tenha nascido outra hoje. Não são outros horizontes, mas a visão muda. É outro olhar depois de subir a montanha. Quase um metro e vinte da pelve à planta do pé, mas os onze quilômetros por dia ainda cansam. Quatro partes da caminhada diária; duas irmãs para quem abano as mãos ou desejo um bom dia, se estamos próximas, três portões com cães barulhentos, oito semáforos - se contar ida e volta. O cansaço do corpo não varia. Mas nunca andei o mesmo caminho. São dez anos de poeiras absorvidas e abandonadas; grandes desimportantes revoluções impulsionadas pelo solado dos meus tênis.

  Doze vezes em um mês "Beleza roubada", uma dezena de "E o Vento levou" e nunca se repetiram em mim. A tela, a sala, a pipoca, a marca do copo na mesa de centro sempre as mesmas e, também, outras nos dias seguintes.  

  As seis salas do museu, descritas no mesmo roteiro, sempre contaram histórias diferentes, mesmo que eu repetisse o lado de início do passeio. Um museu muda porque é vivo; ele também.
 
   Dois irmãos, nenhum grande trauma antes dos cinco anos, algumas mortes e mais nascimentos. Duas cirurgias no joelho direito e uma no esquerdo, três cicatrizes claras e a minha infância é a igual a de alguém que eu nunca conheci e completamente diferente entre nós três na mesma casa. No almoço de natal haverá recortes de lembranças - como em todos os anos - parecem iguais, mas não são. Balançamos a cabeça afirmativamente e sorrimos, porque é natal. 
   Duzentos e vinte um, dez, treze era o número do nosso telefone; ninguém se esqueceu, mas o telefonema mais importante não é o mesmo para ninguém. Talvez um de nós ainda espere ele tocar ou, até, todos nós ainda durmamos desassossegados porque nossos números são outros.
   - Como vai me ligar agora? 
 
  Incontáveis  vezes um coração se quebra, a mesma medida em que ele é colado. Não fica mais fácil com a prática, quem diz isso mente ou é demasiado otimista. Dói com a mesma intensidade da primeira à mais recente.
   Mas é como gerar um filho; sabe-se que doeu, mas para querer parir de novo, uma parte da dor é  impossível que seja rememorada. Por isso coloca-se o coração na mesa mais uma vez. Investir o coração é o segundo parto. Vai praguejar com as contrações e esquecer da intensidade delas com o filho no peito. É um jogo com muitas probabilidades, são mais dados disponíveis.
 
  É a curvatura da planta dos seus pés, é a palmilha feita sob encomenda, é a vergonha de calçar trinta e nove antes dos dezesseis, é a vontade de caminhar e nunca mais parar, porque alguém a deixou do lado de fora do portão, quando a entrada parecia certa. É não ter aonde ir e por isso querer estar em todos os lugares em que nunca foi antes, para tentar um espaço no mundo que pareça casa. 
  É tentar escrever com os próprios passos a história que queria ouvir, mas que nunca contaram. É caminhar para tentar entender o próprio funcionamento; um pequeno manual prático de si. Talvez assim também seja inteligível para o outro. Mas não fica mais fácil depois do terceiro passo, porque é sempre o primeiro.
 
  E depois de aprender a nadar não adianta dizer que os riscos são menores. Vão usar o mar como metáfora para o consolo e dizer que passa. 
 - Nada disto ficará. 
  Ouvir isto não alivia nada, enquanto ainda somos carregadas pela onda, mas o silêncio tampouco.           
  Ontem eu me lembrei do mar e quis entrar. Sem nada, garantia nenhuma de chegar a lugar algum, qualquer sinalização de sucesso, mas o desejo de sentir o movimento, com intensidade, de novo.   
 E depois de mais atropelos de ondas, de mais um regresso atribulado à areia, não vamos cortar o cabelo, nem apagar definitivamente as redes sociais, tampouco faremos as malas ainda ou outra tatuagem. 
 Não é mais tranquilo porque aprendemos a nadar ou a usar metáforas; o mar transita sempre novo.   

  Mas é possível festejar a outra vida, depois da vida afogada. Nadar é solitário e diverso; ninguém para movimentar os braços por nós; nenhum pulmão reserva, nenhuma linearidade na costa conhecida. É isso, você e eu, uma música que nunca mais tocará em rádio alguma. E nem por isso, nós esqueceremos que ela existe.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29 outubro desde inenarrável 2021

Amanda,

Você faz falta aqui neste espaço. Faz falta e promove a saudade de ler e viver seus contos, crônicas.

Dito isto, espero que esteja tudo bem ou quase bem ou parcialmente bem, mas que esteja ascendendo ao bem.

Um abraço

Amanda Machado disse...


Caro Paulo,
não estive completamente afastada, talvez menos visível somente. Nas últimas semanas, tenho vindo, me sentado sem urgência e olhado fixamente para o meu mundo, deixo uma impressão provisória incompleta e prometo nova visita.
Ontem, antes de me sentar, encontrei o seu bilhete na porta, suspirei, tomei uma xícara de café e fui chamada, novamente, às urgências cotidianas. Fui até lá, mas desta vez, acompanhada pela sua gentileza.
Gratíssima pelas generosas leituras e ternos bilhetes.
Abraços, amigo
Amanda