O corpo pequeno alcança o topo da rua íngreme sem muita dificuldade. É uma magra de revelar os ossos; aparentes na clavícula, punhos e, se de malha apertada, saltam as costelas e também revela a escoliose acentuada na cervical. As pernas curtas e magras são ágeis como os de uma criança, embora seja uma mulher adulta de idade indeterminada por mim.
Está sempre com uma composição similar de roupa; quando a vejo pela manhã parece trajar metade de um uniforme. Calça preta de um poliéster que não amassa, mas tampouco é fresco, sapatilhas também pretas, cabelo preso em um coque baixo com uma redinha que finaliza o penteado. Só a camiseta é que varia, imagino que ela vista a camisa de uniforme antes de iniciar o expediente.
A mulher franzina de energia gigante sobe a mesma rua há alguns anos, enquanto eu desço. Se me atraso para sair de casa - que é mais recorrente do que a pontualidade - passo os olhos na portaria atrás do hotel e está lá o pequeno corpo da mulher, com calça preta, sapatilhas e um cigarro aceso.
As primeiras vezes que a notei, foi assim, fumando um cigarro na portaria secundária do hotel. Possivelmente, noutras vezes passou por mim, enquanto eu descia no horário que devia, apressada, não a notava. Mas ali, no alto da rua estreita, amparando uma sacola entre as pernas e fumando um cigarro, o corpo de dimensão infantil chamava a atenção. Foi assim que a conheci, foi assim que a imagem dela se fixou em mim. Um corpo pequeno, exalando fumaça antes das sete da manhã.
Além de rápida, é forte. Não desconfiaria, se eu não a tivesse visto algumas vezes empurrando pesados contêineres de lixo, que pareciam se deslocarem sozinhos, se não fosse pela ponta dos dedos dela nas laterais dos reservatórios.
Depois de transportar de dois a três contêineres por alguns metros e colocá-los simétricos, entre linhas amarelas pintadas no chão - como as de um estacionamento - ela volta íntegra, sem o menor sinal de cansaço ou abalo, ajeitando o lenço quadriculado ao redor do pescoço e conferindo os fios de cabelo alinhados ao redor do coque. Assistir a ela assim, impassível, depois do que aparentemente requisita tanto esforço me causava surpresa, depois passei a ter admiração, mas agora me sinto compadecida pela estrutura inabalável desse pequeno corpo.
Embora a agilidade dela, desde a subida da rua do hotel até o ajuste dos contêneires, entre as linhas amarelas, e a força empenhada ao deslocar os recipientes lotados de lixo tomem a minha atenção e atravessem os muitos sentimentos que afloram quando vejo as suas ações sincronizadas e irretocáveis, os seus minutos antes do expediente são os mais notáveis para mim.
E também não é a força, a agilidade de um corpo, cujos ossos parecem facilmente acessíveis. É a sua placidez, uma espécie de submissão concedida, nessas horas de trabalho; uma retidão de propósito. Muito mais uma força subjetiva do que essa de mãos, braços e pernas.
Quando ela chega à portaria dos fundos do hotel, vinte e cinco minutos antes das sete horas, tira da bolsa um maço de cigarros e um isqueiro, não se senta, porque não tem lugar onde possa fazê-lo, ajeita a sacola com os seus pertences entre as pernas, acende um dos cigarros tirado do maço e o traga profundamente. Não conversa com ninguém, às vezes levanta uma das sobrancelhas e inclina a cabeça, para cumprimentar um companheiro que também chega. Porém, logo é absorvida pelo seu ritual da manhã e não verá mais ninguém chegar. Tem o olhar perdido num céu que só contemplará de novo, quando for breu.
Na solidão dela, com o bastão aceso, em riste, seguro entre dois dedos quase tão finos quanto o cigarro, ela desfruta dos seus últimos minutos de liberdade ao ar livre. Lentamente a química do cilindro de papel toma conta do seu pulmão, já fatigado pela subida, pelo deslocamento de casa até o trabalho, pelos sustos e suspiros durante toda a vida. E talvez seja esse o gesto que a entregue tão determinada ao seu fazer diário.
Quando o cigarro chega ao fim, ainda terá dez minutos para entrar no vestiário dos funcionários, trocar a camiseta, colocar o acessório do uniforme ao redor do pescoço e olhar uma vez no espelho. Mas antes de passar pela portaria do hotel, aspira a última tragada: mais longa, definitiva e apaziguadora.
A fumaça condenável socialmente, a fumaça que a levará ao médico mais vezes ao longo da vida, o pequeno incêndio que assinala a altivez da funcionária passiva de todos os dias é o ritual que permite o trânsito entre a vida sonhada e a possível. Depois do derradeiro trago, ela joga o que restou do cigarro no chão e pisa com toda a força; para apagar qualquer resquício de fogo, para se despedir temporariamente da vida de fora; é o seu gesto de superioridade. Esmaga o resto do cigarro, tal qual é esmagada por um trabalho que exige que ela não desmorone nunca.
Tantas vezes inventa-se um ritual que ajude a abandonar parte de si, para ser capaz de fazer o necessário. Tantas vezes algum gesto sutil que nos ajude a resistir. Eu já lamentei pelos muitos cigarros por ela apagados, porque cada um deles é o prenúncio da vida possível. Mas de tragadas profundas eu também tenho vivido.
Não é só dela o corpo que é o submetido; não é só dela a alma em vapor a qual não é permitida a entrada. Dividimos os mesmos vinte e cinco minutos antes da nossa possibilidade diária, dividimos cigarros e talvez, às vezes, o sonho da existência vivida ser menos distante da desejada.
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