sábado, 30 de outubro de 2021

Quando era mudança e eu não sabia; ainda é

 
  Quando outubro não fazia frio, os adeuses eram mais provisórios e o maior medo era a matemática.  Quando a mãe podia salvar de tudo e o pai era a pessoa mais inteligente viva na Terra. Quando para ter um cachorro bastava o quintal, para ter roupas novas esperar pelo fim do ano e descansar nunca era necessidade planejada. Quando o sono era em qualquer lugar e dormir não exigia preparo, alguém tirava os nossos sapatos e acomodava nossa cabeça em um travesseiro. Quando a figura do sonho era uma saudade e não um receio.
 
  Quando viajar era não ter mapa, horário, dinheiro trocado na carteira para a água ou bateria para o telefone, bastava uma sequência pouco planejada para a chegada: trocar de roupa, comer e sair para ver o mar. 
  Quando as notícias demoravam mais e chegavam com mais verdade. Quando era possível dizer adeus e não se esquecer nunca dos olhos.
 
  Quando nenhuma mágoa era mágoa porque não durava, era só um aborrecimento que passava sem marcas. Quando a criança interior era só uma infância longe da capital. Quando dor de ouvido era excesso de água de muitos mergulhos sucessivos, sem temor. Quando envelhecer era muito longe e a morte era impensada. Quando as mágicas eram mais recorrentes, porque não conhecíamos os truques. Quando não nos matavam, porque queríamos ir embora.

  Quando adiar, era só deixar para amanhã ou depois e isso não era uma instituição propalada e palavra exaustivamente repetida - prometo não usar mais. Quando andar não era medicinal, amar era verbo intransitivo, porque iniciava e terminava no próprio sujeito, e as palavras eram confiáveis, se quisesse. 
  Quando um homem abatido, dormindo na rua não era invisível ou menos importante que o seu cão. Quando deixar comida no prato era pecado e os cabelos com cheiro de vinagre era a indicação de que não se devia compartilhar acessórios de cabelo, ao menos por enquanto.
  Quando a religião era mais sobre amar do que condenar tanto, sem fogueiras, sem gritos, sem hinos com arranjos pop. Quando ao caminharmos até um desejo não era insulto.

  Quando atravessar uma ponte era só não olhar para baixo e seguir até ao outro lado. Sem pensar, antes, no que ficaria para trás e de como seria a vida sem essa outra coisa; nem temer o rio, a altura e a solidão da travessia. Porque estar do outro lado curava de todo o passado.
 Quando marcava a data do próprio aniversário em todos os calendários disponíveis e anotava a data dos aniversários das pessoas mais importantes na última página da agenda. 
  Quando ter uma montanha, uma estrela, uma casa antiga, na qual nunca tinha entrado, era não só possível, mas propriedade inquestionável.  
  Quando as simpatias eram tão eficientes quanto a ciência; para o cabelo crescer, para curar terçol, para o marido deixar de beber, para curar os soluços do bebê. Quando eu sabia que música você ouvia e os lugares que frequentava.
 
  Quando os poemas que contavam a minha história eram os mineiros e os russos. Os primeiros porque falavam a minha língua e os russos, porque eram distantes demais. No poema russo não havia solução. No mineiro tinha pedras e rimas, algumas vezes. Quando eu quis um chá com Tsvetáieva e um café com Adélia, mas ambas, mulheres, nunca tiveram tempo, trabalhavam como a minha mãe e, agora, como eu.
  Quando voltar ao lugar de nascimento era possível, quando se identificar com algo não era um cárcere. Quando a liberdade não era medida pelo tamanho das asas. Quando escolher duas ou três coisas era possível e não contraditório.
  Quando a minha mão ainda se lembrava da sua. Quando a minha mão sentia a ausência da sua.
 
  Quando dezembro chegava um mês antes do que no calendário, quando fevereiro era mais alegre, quando em um dia de maio ela chegou. 
  Quando eram mais mistérios do que dúvidas, mais batalhas do que lutas, mais ombros e menos dedos. Quando você tinha mais volume no cabelo e menos sonhos estraçalhados no chão da cozinha. Quando a água era em filtro de barro e o skincare era só a bucha vegetal.
  Quando era mudança e eu não sabia; ainda é. Alguma coisa acaba agora, nesses cinco minutos de leitura, e amanhã eu já não me lembrarei mais do que perdi. Quando eu reconhecia alguma coisa ao ouvir seu nome; que agora nem sei mais qual é.
 
 

                                                                

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