quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Para uma quinta-feira sem resposta

   Acorda cedo, mesmo quando dorme muito tarde, repete, ainda na cama, os alongamentos que aprendeu com a professora de pilates. No silêncio da manhã, os únicos sons ainda são das suas articulações estalando e o da respiração. Finalmente se levanta, escova os dentes, lava o rosto com o sabonete em gel com micropartículas que esfoliam a pele, que na propaganda anunciava limpeza mais profunda. Sorri e os dentes estão bastante brancos, o sol entra pelo basculante do banheiro e deixa os seus cabelos e olhos mais claros; se acha bonita assim pela manhã. Sem maquiagem, sem censores ou admiradores, que não quer frustrar. Bobagem.

   Coloca comida para o gato e ele imediatamente aparece e a deixa afagá-lo um pouco antes de comer. Este é o trato entre eles, ela dá a comida e ele permite um pouco de aproximação - não muita - logo ele anuncia o fim com um desvio da cabeça e o interesse na tigela. Agora é o som do gato, devorando a comida que invade o apartamento silente. Ela faz o café, enquanto lê as primeiras mensagens do dia e inicia algum álbum que corresponda ao seu humor. O gato, companheiro atento, reconhece o estado de ânimo dela pelos acordes que ele ouvirá durante o dia. Sintonia.

   Atravessa o corredor em busca da vassoura, uma flanela para tirar o pó e lustrar a mesa de madeira da sala, então uma pegunta cutuca leve o seu ombro direito. Ela tenta driblar o pensamento, não quer que a dúvida a perturbe logo cedo, antes era quando se deitava que vinha vê-la, mas agora aparece a qualquer hora e situação. Por isso a música contínua, o gato que a distrai de ser uma humana e as tarefas encadeadas uma a outra, como passos do balé que há muito não frequenta. Tudo que pudesse afastá-la da interrogação, mas esta é interna e a acompanha a qualquer lugar. A pergunta sempre a encontra.

  Vai ao trabalho de oito às seis, toma café, faz relatórios, ligações, tenta entender o que não está explícito, gosta e odeia. É vocação e às vezes só a garantia do aluguel e do veterinário para o gato afetado renal. Depois vai à faculdade, isso há quase vinte anos, toma notas, café na cantina, se despede, aceita caronas, faz trabalhos coletivos e se detém entre os pequenos grupos no corredor para falarem de qualquer coisa. Chega em casa, acende a luz e, antes mesmo do gato, a pergunta a recepciona. Deixa a bolsa no aparador da entrada, tira os sapatos e o gato aparece, ela se levanta para cumprimentá-lo e a pergunta já se pendurou em seu pescoço. O gato parece se lamentar pela companheira, tão obediente, tão leal e generosa, importunada por um peso inútil, que não a deixa livre. Espécie de sina ou cruz do pagador.

  Corre onze quilômetros todos os dias que não chovem, tenta economizar, faz bolos, desmaia eventualmente, compra quebra-cabeças no centro e passa horas no chão juntando partes que não são dela, mas organiza como se fossem. Dá comida, cama, remédios e tudo onde o amor pode se materializar para um felino antipático, mas a dúvida não é justa, nunca permite descanso. É tão ativa quanto ela, em poucas vezes perdeu a corrida e chegou atrasada. Também não desiste sob chuva e continua a seguir os passos dela, o choro também não a sensibiliza; por vezes a dúvida se irrita com os soluços dela e grita mais alto e é ainda mais agressiva.

  Tira a pele do tomate, frita a cebola no azeite, em fogo baixo, imita a chefe de cozinha midiática e faz pequenos malabarismos com a massa na frigideira. Abre um vinho e a dúvida é quem encontra o saca-rolhas. O gato, de longe, reprova a parceria.
  - Um pouco de parmesão.
  Ela solicita. A interrogação abre a geladeira pega o queijo, o ralador na gaveta e finaliza o prato. Sentam-se juntas na bancada da cozinha e escutam Edith Piaf. Sem arrependimentos agora. O gato se recusa a participar dessa conferência que oprime a sua dona, mais do que ele é capaz de fazer.  
 
  É quinta-feira, início de novembro e tem muito mais do que planejou, embora esteja rodeada por ausências. Mas depois de tudo, ainda a pergunta a persegue no almoço, na sesta, na hora do jantar, quando o caminhão de gás passa ou quando batem a campainha. 
  Não há sabonete que limpe, incenso que afaste, lei que a proteja. Não há música que cale a voz insistente da pergunta; mãos que esganem o pescoço dessa incômoda questão ou estrada que a faça a desistir. Toma o último gole vermelho da taça, sorri para o gato, lava os pratos e se ressente um pouco por ainda não ser capaz de vencer o conflito. Um dia estará de armadura, lança em punho e talvez um dragão, mas hoje ainda não foi. Dá comida ao gato e nunca saberá, afinal, por que não ela.
 


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