Acorda cedo, mesmo quando dorme muito tarde, repete, ainda na cama, os alongamentos que aprendeu com a professora de pilates. No silêncio da manhã, os únicos sons ainda são das suas articulações estalando e o da respiração. Finalmente se levanta, escova os dentes, lava o rosto com o sabonete em gel com micropartículas que esfoliam a pele, que na propaganda anunciava limpeza mais profunda. Sorri e os dentes estão bastante brancos, o sol entra pelo basculante do banheiro e deixa os seus cabelos e olhos mais claros; se acha bonita assim pela manhã. Sem maquiagem, sem censores ou admiradores, que não quer frustrar. Bobagem.
Coloca comida para o gato e ele imediatamente aparece e a deixa afagá-lo um pouco antes de comer. Este é o trato entre eles, ela dá a comida e ele permite um pouco de aproximação - não muita - logo ele anuncia o fim com um desvio da cabeça e o interesse na tigela. Agora é o som do gato, devorando a comida que invade o apartamento silente. Ela faz o café, enquanto lê as primeiras mensagens do dia e inicia algum álbum que corresponda ao seu humor. O gato, companheiro atento, reconhece o estado de ânimo dela pelos acordes que ele ouvirá durante o dia. Sintonia.
Vai ao trabalho de oito às seis, toma café, faz relatórios, ligações, tenta entender o que não está explícito, gosta e odeia. É vocação e às vezes só a garantia do aluguel e do veterinário para o gato afetado renal. Depois vai à faculdade, isso há quase vinte anos, toma notas, café na cantina, se despede, aceita caronas, faz trabalhos coletivos e se detém entre os pequenos grupos no corredor para falarem de qualquer coisa. Chega em casa, acende a luz e, antes mesmo do gato, a pergunta a recepciona. Deixa a bolsa no aparador da entrada, tira os sapatos e o gato aparece, ela se levanta para cumprimentá-lo e a pergunta já se pendurou em seu pescoço. O gato parece se lamentar pela companheira, tão obediente, tão leal e generosa, importunada por um peso inútil, que não a deixa livre. Espécie de sina ou cruz do pagador.
Corre onze quilômetros todos os dias que não chovem, tenta economizar, faz bolos, desmaia eventualmente, compra quebra-cabeças no centro e passa horas no chão juntando partes que não são dela, mas organiza como se fossem. Dá comida, cama, remédios e tudo onde o amor pode se materializar para um felino antipático, mas a dúvida não é justa, nunca permite descanso. É tão ativa quanto ela, em poucas vezes perdeu a corrida e chegou atrasada. Também não desiste sob chuva e continua a seguir os passos dela, o choro também não a sensibiliza; por vezes a dúvida se irrita com os soluços dela e grita mais alto e é ainda mais agressiva.
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