terça-feira, 9 de novembro de 2021

Modos de abandono sem dor

   Fugir. Sem escusas, divisão de bens - abrir mão dos livros, discos, da pessoa que é quando está nesta casa; mesmo que essa pessoa pareça melhor do que a que parte - sem tentativas desperdiçadas de explicação. Sem entregar um pequeno inventário de motivos da partida ou de legados urgentemente elencados para tapar o corte. 
  Colocar alguns pertences numa mala e ir embora antes que o cão bloqueie a porta. São sensíveis os animais domésticos, é preciso tentar desviar deles mais do que das pessoas; que orgulhosas, talvez nem se interponham.
 Não se lembrar que teve os seus dias suspensos por uma ideia do que era o outro, não se segurar ao sonho desta chegada - que nunca será. Evitar - por tudo neste mundo - evitar pensar no se tivesse ficado.

  Sair para comprar cigarros. Neste caso, nem mala nem dissimulação com o cão. Abrir a porta e gritar, quando já estiver do lado de fora:
- Vou comprar cigarros e já volto. 
  Assim, sem cenas, sem latidos, sem troca de acusações ou hesitação. Descer as escadas, abrir o portão, seguir até o final da rua e pedir um táxi. Sem dar nada por perdido, sem tentativas de preservação de alguma imagem; só arrancar da moldura o quadro e não olhar para trás. 
  Não se submeter ou aos outros a um choro, soluços, arrependimento pela fratura; só ignorar o barulho dos ossos. Quando estiver segura, compressa de água quente no ventre e chá de camomila. Não cura; nada cura.

  Enlouquecer. Não fazer, dizer ou tentar ser o esperado, combinado ou imitado. Ser sempre um mistério, uma possibilidade de tensão. Ser um vulcão com a lava no topo, o tempo todo uma ameaça. Ninguém relaxa, não há paz possível com o copo cheio até a boca e a garrafa se aproximando para colocar um pouco mais. Ser copo, líquido, garrafa e mão de uma só vez.
  Empenhar bens, abdicar de heranças, não conferir o troco, deixar os boletos, faturas e comunicados de desligamento da energia elétrica se acumularem debaixo da porta. Não pensar, não saber, não se render às leis, orientações coletivas ou acordos. Não se sentar calada em uma sala de espera, não ser borbulhante e aduladora em eventos sociais. Rosnar, quando pleitearem simpatia. 

  Desviar. Não seguir o endereço, não falar em itinerários, não ir ao café do Centro para a conversa, se possível, esquecer o idioma. Não voltar ao assunto, nunca mais tocar no tema. Dar-se por vencida e vestir a derrota. 
  Não lavar mais os pratos; que tudo agora seja servido neles sujos. A lavagem de roupa é particular e intransferível, que cada um esfregue as suas nódoas. Escolher a escada, se ao abrir o elevador, o outro estiver lá. Mudar de calçada, comprar em outra farmácia e deixar de comer pão por alguns meses, para não ter o desconforto de um encontro na fila. Cortar mais o cabelo, comprar outras roupas, usar óculos escuros e boné. Tentar estar irreconhecível pelo maior tempo possível. Inventar a invisibilidade, a amnésia, a indiferença absoluta.

  Tomar chá de sumiço. Nem camomila, nem carqueja, nem verde ou de maçã. Desaparecer sem pistas, apagar os rastros. 
  Desativar todas as redes sociais, mudar o número de telefone, privar-se da notoriedade de mais uma selfie. Tomar café, ir à feira, fazer o exercício físico diário, contemplar uma planta em flor, dar um agasalho ao homem da rua, abraçar um afeto, receber um bilhete delicado, ler os grafites filosóficos do muro sem registros ou testemunhas virtuais. 
  Tornar-se inacreditavelmente reservada; completamente desinteressante aos olhos desconhecidos e desaparecida aos que merecem afastamento.
 
  Desintegrar-se. Queimar mil vezes e ainda enfrentar a chama; quebrar duzentas vezes e pular o precipício para escapar da violência do conformismo, perder-se em alto mar pela décima segunda vez e continuar a se enamorar pelo oceano.
  Virar pó, lava, cinza, corpo submerso. Se tornar imperceptível a olho nu. Ser estrela ainda anônima e pequeniníssima na galáxia menos visível. Não ser corpo, tampouco ideia. Estar ilimitada em todos as dimensões. Impossibilitada de batismo; de nascimento suspeitado e morte imprevisível. Deixar de ser.

  Não ver. Abandonar a capacidade de se comover. Ouvir uma música e não chorar com ela; assistir a um filme e não achar que a vida toda valeu a pena por um sequência, de dois minutos, de planos em preto e branco e trilha instrumental. Não querer morar num poema, não desejar ouvir uma só vez a poeta polonesa com um cigarro na mão. Não ser atravessada pelo final de um romance, conto ou crônica. Não desejar ter escrito, fotografado, esculpido, tocado ou dirigido aquela obra. Não se lembrar de ninguém quando três acordes tocam no fone; não evocar uma lembrança quando vê uma pintura. Não se sensibilizar só porque suspeitou amor.
  Diz que vai embora, mas há algo que fica; adormecido, às vezes, mas incapaz de partir. Não dói todos os dias, mas está lá. Fechar os olhos já é partida, mas não se completa.


 

4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 11/11/21

Tipo assim, ficou bom demais da conta!

Não há adeus para sempre, fica ali um éter que dói a eternidade.

Um abraço!!!

Amanda Machado disse...

Minas, 12/11/21

Obrigada, Paulo!

Não há...
Abraços,
Amanda

Bel disse...

você escreve tão bem!!!

Amanda Machado disse...

Você que me lê bem, Clemezinha!
Gracias