sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Que não tenhamos que domesticar antílopes

  Adiar os finais para as coisas caberem no tempo que temos agora. Abreviar as burocracias tediosas para alargar as horas das banalidades prazerosas, como tomar café, enquanto o olhar sobrevoa a rua, partindo do basculante da cozinha, assistir ao grupo de idosos praticando Tai Chi Chuan na praça, aos sábados de manhã, nos vermos mais vezes refletidos nos olhos de alguém, fazer ou receber massagem nos pés, acarinhar o gato do vizinho, suspirar por nada. 
  Aprender a não criar expectativas pela chegada do extraordinário, porque assim, tal qual aguardávamos o beija-flor no bebedouro de água com açúcar; só vem quando não estamos olhando.  
 
  Talvez entregar o que prometemos em algum prazo, mas delimitar pausas serenas, entre o urgente e o necessário. Saberemos, antes, a razão de um e de outro. É necessário sentir e comunicar o sentimento; é urgente acompanhar ao médico e dizer que tudo ficará bem. Pagar as contas e amar são necessários e urgentes também.
  Talvez encurtar os prólogos para os textos não ocuparem todos os espaços que conquistamos para nós. Talvez honrar mais os instantes e só os guardarmos na memória, sem necessidade de registros públicos.

  Abrir avenidas de insubmissão aos relógios. Ninguém desce se não se sentir preparado, não precisa ficar até os créditos subirem, se já viu o bastante.
  Ler um livro com intervalos adiados, valentemente, somente para ir ao banheiro e encher de água a garrafa; dançar sem par na sala do apartamento, a música que tocar no shuflle; levar a infância a um parque com balanço e sorvete, mesmo que seja a própria. Se lançar a um projeto modesto e levá-lo a cabo, como uma estrategista bélica, só porque gosta da imagem que isto pode resultar, aprender a bordar, fazer tricô, pintar um móvel, encontrar o Chico Buarque em algum bar do Rio de Janeiro e fingir naturalidade, decorar um poema grego, instalar uma cortina ou devolver à própria vida a luminosidade ofuscada pelo afastamento compulsório da promessa, que até há pouco chamava certeza.
 
  Testemunhar as colisões se transformarem em novas galáxias; na vida. Desilusões, abandonos, términos, tudo ser outra coisa, mágica também, além da dor.
  Não arrastar, como Sísifo as pedras, nem medo nem culpa, nem despedida antes da ida se concretizar. Aprender a prospectar menos; aproveitar o superficial e se o mergulho não acontecer, juntar os pertences e ir embora, sem grandes contusões. 
 Oferecer o assento à desconhecida com mais sacolas que as suas, o chá de maracujá e camomila  à vizinha insone, os biscoitos frescos, ao porteiro, e não aqueles com validade próxima do fim, paciência com quem não aprende, solidariedade com quem esquece, silêncio para quem quer chorar e música para quem já chorou.

  Não desobedecer, não resistir, tampouco ser subjugada ao tempo; andar ao lado. Não ignorar que às vezes ele é tão curto, tão efêmero que parece inimigo, mas não é; o sentimento é que desejava a impossível infinitude. Outras vezes ele é tão largo e distante; que parece um carrasco, dias à conta gotas, mas de novo não é. Libertar a fragilidade, oferecer a vulnerabilidade quando a coragem não chegar a tempo. 
  Devorar o instante, respeitar as memórias construídas nele; convocar aliados, sem trocas, promessas de vitória ou eternidade de laços, só um chamamento, ao amigo, ou dez.
 
  Agradecer pelo mistério nosso de cada dia; não ter todas as respostas é também ventura. 
  Desorientar os céticos, pragmáticos e soberbos. Oferecer companhia aos perdidos, encantados e simples. Deixar as janelas sempre abertas para o gato, os degraus sem grades para os cansados, espaços na agenda para quem também oferece os seus dias da semana. 
  Assumir que também temos culpa, mas que não está tanto em nossas mãos e que perder é também um destino. Essa angústia do não-encontro, das ausências e silêncios; nunca é solitária neste mundo.
 
  Que não tenhamos que perseguir estrelas até matá-las com o nosso olhar amarelecido, que não ofereçamos desertos, porque não nos deram oásis algum dia,  que não tenhamos que aprisionar borboletas para enxergar belezas, que não tenhamos que domesticar antílopes só porque gostamos deles, liberdade é o amor mais genuíno. Que ousemos oração, sem um deus que oprima.
 

 
 

2 comentários:

David disse...

Me acostumei a te ler, se sera um hábito ou futuro vicio não sei, mas me faz bem, me abre novas janelas e visões, como ...
"Aprender a não criar expectativas pela chegada do extraordinário ..."
"Abrir avenidas insubmissao aos relógios, não precisa ficar até os créditos subirem se já viu o bastante"
"Aprender a prospectar menos, aproveitar o superficial e se o mergulho não acontecer juntar os pertences e ir embora sem grandes contusões..."
Curioso que te conheci por imagens mas me cativou por palavras , obrigado por tudo até agora 😉🙏

Amanda Machado disse...

Que emocionada eu fiquei com a sua mensagem, David!

Fico feliz quando o que escrevo chega a alguém e, se possível, atravessa. Grata demais pelas suas leituras e a delicadeza da mensagem. É uma honra fazer parte do cotidiano de alguém cujas imagens também me encantam e com histórias tão incríveis na bagagem.
Sou eu quem agradeço! Abraços. Volte sempre que quiser.