terça-feira, 30 de novembro de 2021

O exercício de tentar não perder

  Do novo testamento, dos dois triunviratos romanos, da fórmula de Bhaskara, do nome daquele ator egípcio, do país onde está a maior avenida da América Latina, dos dois modos de lavar a roupa branca na máquina, das invasões bárbaras, das coisas como elas são, da frase do livro que eu li ontem e destaquei com o lápis de ponta pouco fina, dos presentes dos três reis magos, dos ingredientes do molho pesto, das tribos indígenas que habitavam essa cidade e das promessas que eu fiz para mim eu me esqueci.

  De não ficar por muito tempo onde não caibo, de não falar um nome e pensar que assim eu me esqueço, de não lavar o cabelo logo depois do almoço, de não gastar mais do que ganho, de não doar o que eu tenho em conta, de não dormir de trança, de não ter medo de ter medo, de ir à rua São Sebastião comprar meias, de retornar as ligações algum dia, de programar o alarme meia hora antes e não contar com mais meia hora para o café, de abandonar a condução, se estiver indo em direção contrária ao único desejo, às vezes me esqueço.

  Da cor dos seus olhos, do passeio de barco em Cabo Frio - só nós duas - do primeiro e do mais recente livro que me deu, de tudo o que me deu até aqui, das suas mãos gordinhas e das dobras do seu pé, dos seus fios de cabelo muito finos, que eu escovava em dez minutos, do penne com molho de castanhas e da torta de banana que você fazia, do seu amor por Caetano, da sua coleção de revistas Caros Amigos, das suas aulas em retroprojetor, do seu sotaque mais carregado que o meu, dos seus penduricalhos, badulaques, bijuterias e tudo mais que brilhe, das crases que me ensinou e eu não aprendi, de nada disso eu me esqueci. 

   Do seu pai e da sua mãe, que também são meus. Da bermuda jeans com pregas que você usava e eu queria que me servisse algum dia, do xampu para piolhos com cheiro de maçã verde, de você chamar a mãe quando eu passei mal a noite inteira depois das três maçãs do amor que comi na quermesse, do dia em que me deu seu trabalho de Camões para eu ler, do dia em que você se formou e eu chorei, do dia em que você chorou e eu também, de quando saíamos juntas para votar, de quando não pensávamos a nossa infância, porque estávamos nela, do vidro de perfume com tampa verde que você ganhou quando fez quinze anos e que eu usava em todas as minhas cartas, da sobremesa de três camadas da qual só gostávamos da última, eu também ainda me lembro.

  As instituições ainda funcionam, mesmo que não olhem por nós, o país ainda não colapsou completamente, estamos todos vivos aqui em casa e aparentemente bem, ficamos ao mesmo tempo gratos e culpados pelo privilégio da sobrevivência. Aos sábados o centro comercial ainda enche, mesmo que quase não vamos mais juntas e as conversas sobre a política do país ainda se dissolvem no calçadão, mas eu nunca mais voltei à rua da mesma maneira: achando que nunca tinha sido infeliz.
  O cartão postal de Buenos Aires, que não enviamos, continua tão em branco quanto os roteiros que não concluímos ainda e talvez nem vamos. 
 Das duas irmãs - aquelas nossas vizinhas - só uma ainda vive, um pouco triste, um pouco velha, um pouco cansada, mas vive. O cachorro da casa da frente morreu antes que uma das irmãs e eu ainda sinto falta da imagem de amor que é um cão idoso. Por aqui, continuo tentando segurar tudo com as palavras; tenho medo de me perder se não atravessar com elas. São essas as notícias de hoje e de uma década.

  Eu não olhei para o caminhão de mudança, quando partiu. Eu não levei uma sacola sequer para o caminhão-baú. Não queria empenhar esforço numa despedida. 
  Se eu soubesse que era a última vez, eu teria ficado mais. Se eu soubesse que eu nunca mais voltaria, do mesmo jeito, depois da sua partida, tinha ficado na rua por mais tempo.

  Olhe agora, ainda estou lá; muda, porque não sei dizer tchau a quem eu quero tanto bem e que sabe partir muitas vezes, mas voltar não.



8 comentários:

John disse...

Excelente texto! Você usa muito bem essas enumerações caóticas

Bel disse...

Lindo! Lindo! tão maravilhosa vc!

Amanda Machado disse...

Ahhhh...que honra deste blog...uma leitura crítica! Anotado!
Obrigada, John!

Amanda Machado disse...

Gracias, Clemezinha! Maravilhosa é tu!

Paulo Abreu disse...

Amanda, Amanda! Puxa vida! Que crônica da al na é esta? Coisa mais que linda!

Amanda Machado disse...

Ahh...obrigada, Paulo! Pela leitura e pela visita sempre tão comemorada.

Keila Lima disse...

Tão carinhoso ler e reconhecer a Carla.
Amei, Amanda

Amanda Machado disse...

Obrigada Keila...pela leitura e pela perspectiva tão afetuosa.