De não ficar por muito tempo onde não caibo, de não falar um nome e pensar que assim eu me esqueço, de não lavar o cabelo logo depois do almoço, de não gastar mais do que ganho, de não doar o que eu tenho em conta, de não dormir de trança, de não ter medo de ter medo, de ir à rua São Sebastião comprar meias, de retornar as ligações algum dia, de programar o alarme meia hora antes e não contar com mais meia hora para o café, de abandonar a condução, se estiver indo em direção contrária ao único desejo, às vezes me esqueço.
Da cor dos seus olhos, do passeio de barco em Cabo Frio - só nós duas - do primeiro e do mais recente livro que me deu, de tudo o que me deu até aqui, das suas mãos gordinhas e das dobras do seu pé, dos seus fios de cabelo muito finos, que eu escovava em dez minutos, do penne com molho de castanhas e da torta de banana que você fazia, do seu amor por Caetano, da sua coleção de revistas Caros Amigos, das suas aulas em retroprojetor, do seu sotaque mais carregado que o meu, dos seus penduricalhos, badulaques, bijuterias e tudo mais que brilhe, das crases que me ensinou e eu não aprendi, de nada disso eu me esqueci.
Do seu pai e da sua mãe, que também são meus. Da bermuda jeans com pregas que você usava e eu queria que me servisse algum dia, do xampu para piolhos com cheiro de maçã verde, de você chamar a mãe quando eu passei mal a noite inteira depois das três maçãs do amor que comi na quermesse, do dia em que me deu seu trabalho de Camões para eu ler, do dia em que você se formou e eu chorei, do dia em que você chorou e eu também, de quando saíamos juntas para votar, de quando não pensávamos a nossa infância, porque estávamos nela, do vidro de perfume com tampa verde que você ganhou quando fez quinze anos e que eu usava em todas as minhas cartas, da sobremesa de três camadas da qual só gostávamos da última, eu também ainda me lembro.
Olhe agora, ainda estou lá; muda, porque não sei dizer tchau a quem eu quero tanto bem e que sabe partir muitas vezes, mas voltar não.
8 comentários:
Excelente texto! Você usa muito bem essas enumerações caóticas
Lindo! Lindo! tão maravilhosa vc!
Ahhhh...que honra deste blog...uma leitura crítica! Anotado!
Obrigada, John!
Gracias, Clemezinha! Maravilhosa é tu!
Amanda, Amanda! Puxa vida! Que crônica da al na é esta? Coisa mais que linda!
Ahh...obrigada, Paulo! Pela leitura e pela visita sempre tão comemorada.
Tão carinhoso ler e reconhecer a Carla.
Amei, Amanda
Obrigada Keila...pela leitura e pela perspectiva tão afetuosa.
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