terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Isso que não vai arrasar uma ilha, tampouco deixá-la no mesmo lugar

   Isso que não tem cheiro bom ou ruim e que também não é inodoro, mas carrega o aroma de um tempo. Isso que escorre pelas mãos se o apertamos com muita firmeza e que gruda na pele se ameaçamos soltar. Isso que nunca preenche, mas que com pouco já satisfaz.
   Isso do qual não lembraremos do nome com exatidão daqui a duas décadas ou a dois meses, por sorte, mas que terá algum lugar na memória; mais iluminado ou velado - só nós saberemos no fim. 

  Esse para o qual abrimos a casa, oferecemos um banquete ou a melhor iguaria da geladeira, despensa ou plantação. Esse comensal incomum a quem recebemos com todas as honrarias possíveis e que às vezes nem nos deixa um cartão em envelope vermelho. Esse ao qual tratamos com mesuras e delicadezas, só porque nos sorriu alguma vez.
  Isso que pode sacudir só as cortinas no batente da janela, numa brisa primaveril ou nos arrancar o teto como um furacão tropical; mas que não mata. 
 
  Isso que nos faz cantarolar ao acordar e não permite que o bom humor se desfaça nem com o cesto de roupas sujas nem com a desistência de última hora da amiga com quem combinamos um café, nem com os cento e vinte reais pela bomba da descarga nem pelas ligações insistentes da operadora.
  Esse ao qual quase nem notamos quando se aproxima pela primeira vez, mas experimentamos um tipo de estraçalhar intermitente se vai embora quando não esperávamos. Esse inventor de futuros em comum e inquisidor de passados alheios, esses olhos que espreitam as outras chegadas e repousam na ignorância sobre outros passageiros do comboio.
 
  Isso que bate no peito como um rabo de peixe recém-capturado, querendo liberdade, mas sem saber para que lado fica a água; isso que desinquieta, mas não apavora, que revoluciona, mas não pega em armas. Isso que é comum a todo ser que passa por essa terra, mas é só nosso; tão impossível de medida, de descrição para um retrato falado ou diagnóstico. 
  Esse que é um cachorro caramelo, esperando pelo dono, no portão, com a cabeça entre as grades e os olhos cheios de uma carência tão remota quanto a própria espécie. Esse que é gato escaldado e que a qualquer sinal de fogo ou chuva entra para a casa, sem desvios. Esse que não ladra, não morde, não arranha, mas que deixa marcas profundas, se cicatriza. 

  Isso que faz alguém atravessar a cidade, o estado, o país, o continente, o orgulho ou aguardar que atravessem, enquanto finge distração, fumando na janela e olhando os carros na rua. Esse que nos ajuda a atravessar os desertos mais insólitos, nos alimenta e mata a nossa sede com esperança sólida. Esse que nos dá a mão quando estamos prestes a afogar; esse que nem desconfia que não sabíamos nadar e que mesmo assim chegou. 
  Esse que confunde Nescau com Toddy, colírio com Rinosoro, barata com besouro, débito com crédito, Brás Cubas com Simão Bacamarte, madeleines com brioches, mas sabe como entrar, gentilmente, na casa, nos planos, entre vírgulas, na vida.

  Isso que esquenta, mas não vai incendiar; isso que cresce sem fermento biológico ou mãos para sovar e que murcha, quando o tempo no forno não é o certo. 
  Esse que não dorme em paz, tampouco causa insônia; esse que é um ansiolítico sem reações adversas, que pacifica regiões internas em conflito; que decreta paz por trinta minutos ou quinze horas, ao menos. Esse emissário da ONU que logra todos os êxitos com um poema do Neruda,um fado da Amália ou um "eu não disse que vinha?". 
  Isso que desassossega, mas não perturba; que gasta, mas nunca esgota todos os minerais do terreno. Esse que bebe, que come, que consome todos os líquidos, os sólidos, os gasosos, mas não faz sem permissão. Esse que pede licença, desculpas, o saleiro, a cerveja gelada - já que está de pé mesmo - e também oferece licença, desculpas, o açucareiro e cerveja gelada - já que está de pé mesmo.
 
  Isso que não vai arrasar uma ilha, tampouco deixá-la no mesmo lugar; isso que sabe desacomodar sem assustar. Isso que, antes de tudo, encoraja, estimula, torce, bate palmas, assobia e se orgulha. Esse que sabe que o molho de tomate concentrado do supermercado não é saudável e que por isso o dissolve um pouco em água, para que seja menos letal; esse que sabe que morre, mas quer adiar essa ida a todo custo.
  Esse que não causa o medo como o dos latidos de dobermans da esquina, mas não dá a confiança de que é tranquilo atravessarmos a rua sem nos despedirmos antes.
  Esse que nos ajuda a não limitarmos os olhos; que é espelho e também  microscópio. Esse que se torna um rio, quando precisamos afogar algo em nós e logo se converte em seca, quando nos cansamos da umidade.
  Isso que não salva, tampouco condena, mas também não sabe ser imparcial. Esse que não vem para fazer justiça; que não ignora os maus ou só favorece os bons. Isso do qual não evito falar, embora tente não dar nome. Isso é tão humano, quanto sagrado; só não transita indiferente.

                           


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 27 dez 2021

Querida Amanda,

2021 levou uns três anos para terminar, foi um longo e exaustivo ano. 2020 ainda havia folego e esperança, mas 21 não permitiu estas benesses. Dito isto, vamos ao texto. O que vi e li e tenho grandes possibilidades de estar excêntrico, não do ponto de vista comportamental, mas físico. fora do centro, não tangenciando com a sua construção, mas arriscarei expor aqui.

Você navegou entre referências espaciais e referências temporais, num belo jogo entre "esses" e "issos". Muito sutil, muito delicado, apresentando as filigranas da vida de uma maneira amena. Gostei muito.

Seu presente é seu futuro na escrita, redação e conquistas literárias.

um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, Início de 2022
Querido Paulo,
recebi a sua visita com muita alegria nos últimos dias de 2021. (Embora mais um ano difícil, somos ainda sobreviventes e isto já uma missão importantíssima para o novo ano.)
Não o respondi antes porque me ausentei por alguns dias desse meu lugar para visitar outros tão preciosos quanto este. Senti saudades daqui e da prosa acalentadora que estabelecemos ao longo desses anos.

Obrigada pela visita e que tenhamos coragem para viver o novo ano da maneira mais generosa e corajosa que pudermos.

PS: Meu presente é fundamentado nos encontros fortuitos pela vida... Obrigada! Um 2022 cheio de esperança!
Abraços