quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Explicando a chuva

  Essa é a xícara que a sua mãe ganhou de presente de casamento há mais de quarenta anos - branca, com o desenho de um ramalhete de flores lilás no centro e borda dourada. Sua mãe bebeu café em copo americano, mas guardou a xícara para você tomar o seu em vasilhame mais sofisticado. Talvez tenha medo de quebrá-la, agora, talvez você também queira guardá-la para outras mãos e lábios ou vai querer usá-la mais vezes - essa é uma escolha cujos impactos não poderão ser ruins nunca.
  Essa xícara não é a sua mãe, embora você possa ver o rosto dela quando os seus dedos tocam a delicada alça de porcelana. Esse café, na xícara, é ainda mais longínquo -  é  a sua ancestralidade sorvida. É ele recém-colhido, secando em uma pilha gigantesca no pátio da casa da avó.

  Essa é a cama em que você chorou algumas noites do ano passado, talvez já neste também;  a cama a qual você dividiu com alguém - em presença e pensamentos. E também foi mais solitária, em ausências e alienação.
  Nessa cama, o seu cansaço físico, espiritual, mental e amoroso. Nessa cama a sua desistência, soluço e, por fim, silêncio.
  Nessa cama, o seu corpo descansado e a sua alma restaurada. Nessa cama, mil cacos colados.
 O travesseiro e as lágrimas, o lençol e a pele, a almofada e a angústia, a cabeceira e o desejo. Nessa cama, o sono adiado, aguardado, clamado a todas as deusas, medicado e, finalmente, saciado. Nessa cama, pernas e braços longos e cabelo despenteado. Essa é a cama feita e desfeita todos os dias. O seu começo e o seu fim. O seu apagamento e o renascimento. 
  Nessa cama, a sua culpa e a redenção com suor e amaciante de roupas.

 Essa é a chuva de todos os verões por aqui, água armazenada nas Cumulonimbus estacionadas sobre a sua comunidade, aguaceiro obstinado proveniente da zona de convergência do Atlântico Sul. Chove há mais de uma semana e é difícil pensar em um jeito de sair pela cidade sem que os pés sejam completamente molhados. O carro demora a responder a chamada, a energia elétrica fica instável, os estrondos dos trovões assustam o gato, que logo se aconchega no seu colo e a rua já é um lugar distante para vocês dois, hoje, de novo.
  Essa é a chuva que não levará a sua casa, o seu gato, o álbum de fotografias na terceira gaveta da estante, porque o seu apartamento não foi construído em área de risco e você sabe que é um privilégio ter herdado mais do que uma xícara.
  Essa é a chuva que harmoniza com a sua melancolia pelos dias em isolamento anunciado, cujo som parece agradável para você dormir, mas que dilapida natureza, sítios construídos, ceifa histórias e inicia pesadelos. Essa é a mesma chuva de outros verões, mas também é outra.

   Esse é o vizinho com o qual você não contava  quando alugou o apartamento; no contrato eram só dois quartos,banheiro, sala, cozinha, varanda e uma vaga na garagem. Mas foi o vizinho quem recebeu suas encomendas dos Correios, avisou que a chave estava do lado de fora da porta e se ofereceu para ajudá-la com o que precisasse quando soube da sua cirurgia. Nesse prédio, além do vizinho, há  o casal que combina as roupas de passeio, as duas crianças que se chamam de mano e mana e que aprenderam a palavra sabotagem na semana passada. Há ainda a moça que passeia com o  cão todas as noites, quando chega do trabalho e você sabe quando saem ou chegam pelo som da respiração e passos do cão, ambos pesados e gigantescos como ele. Esse é o vizinho que segura a porta do elevador, enquanto você se apressa pelo hall, ajuda com as suas sacolas, pergunta sobre o gato e seus pais, elogia a sua roupa e decoração de natal na porta. Esse é o vizinho com o qual você não contava e agora quer contar.

  Esse fogo no peito, que às vezes se arrefece e parece que nunca mais voltará; é, na verdade, um contiunum, é uma faísca que sobrevive a qualquer gelo. Esse é o fogo que a faz sonhar, ainda que você ignore Morfeu; que aquece, cozinha, requenta a esperança, mesmo quando a desilusão parece esfriar a chama. 
  Esse é o fogo que não é ele, não é ela, não é ninguém além de você. Esse fogo no peito que parece anestesiado, depois das pílulas, permanece antes, durante e depois das ligações químicas com o seu cérebro. Esse fogo é mais veloz e mais resistente também.
  Esse é o fogo que ameaça uma destruição, quando você desaprende a liberdade, mas é também a redenção, quando a onda de indiferença se aproxima.

  Esse cabelo, esse nariz, esse queixo e mãos são seus desde antes de serem enrugados ou flácidos e estarão com você até o derradeiro dia. Esses calcanhares, essas unhas, esses joelhos pontudos são você, sua mãe, seu pai, seu gato, seus irmãos, seus filhos, seu vizinho, suas goteiras no teto, sua pia transbordando e os vizinhos que ainda vão chegar, contando apenas com quarto, sala, banheiro, cozinha, varanda e uma vaga na garagem.
 Essa franja torta, essa sobrancelha rala, esses olhos verdes e tristes é você e o mundo que não sabe e não precisa de você, mas só existe assim porque você colocou os seus olhos nele. Essa pressa, essa angústia, essa vontade de resolver coisas indissolúveis; essa cama, essa chegada, essa partida você também bebe na xícara diariamente e não há dieta possível que a afaste desse desjejum.

  Essa é a manhã que você tem, que há anos você vive, mas em duas horas nunca mais terá - se repetindo infinitamente em surgimento e fim.
  Esse é o ano possível, os planos que irão desviar, os abraços que não chegarão, os olhos que não pode mais negar. Esse é o início realizado. Podia ser outro, mais triste, porque demorou ou mais alegre, porque esteve de férias, mas foi esse que nasceu. 
  Esse país, que podia ser outra coisa agora, é também o que deu para salvar. Esse país, no qual não se reconhece algumas vezes, ainda é seu. Segura a xícara com cuidado, mas forte e respira; amanhã outra manhã possível. Talvez um outro país que ainda seja seu.



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