quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Sou eu a mãe e a filha

  Um dia eu disse: - O pai dos meus filhos. E gargalhei, enquanto ele fazia cócegas na minha barriga. Ele disse: - Você a mãe. Com os olhos marejados e numa pausa serena. Ou ele não disse nada, não pausou ou marejou os olhos e eu inventei. 
  Um dia ele disse: - Não há nada que eu queira mais do que a sua felicidade. E eu disse: - Queira a sua também. Ou eu não disse nada, mas quis dizer isso, agora.
  Um dia ele disse: - Precisamos de um tempo. E eu disse: - Precisamos mais, distanciamento. Dessa vez eu tenho certeza de que disse exatamente isso. Talvez, hoje, duvidar me consolaria um pouco.
  Eu pensei: liberdade. E ele eu não sei o que pensou, talvez o mesmo. Eu senti: mágoa, ressentimento e ele mandou um e-mail com os valores da pintura do imóvel, da TV e da estante, com as quais eu fiquei.  E assinou: raiva.

  Um dia, antes de chegar à casa da minha mãe, eu chorei na chuva, sozinha, do lado de fora, porque eu não queria ocupar, de novo, o lugar de desamparo. Já era quase noite, abri o portão e me sentei debaixo da janela da lavanderia, suspeitando que àquela hora ninguém lavaria roupas.    Depois de alguns minutos, ensopada de chuva, entrei em casa e não tive que explicar choro algum. Minha mãe já me esperava com uma caneca de chá e uma toalha nas mãos. Ela me ouviu chorar, mas nunca disse nada. Acho que o chá e a toalha, se explicam assim. Mas nunca vou ter certeza. Só me lembro de ser filha e aquela noite curou o que latejava. Dormi por doze horas.
 
  É difícil separar os grãos dos acontecimentos das pedras do que poderia ter sido. Escolher feijão é infinitamente mais fácil. Quase nunca cozinhamos pedras e descartamos feijões.
  A mancha maior do corredor foi ele quem fez quando arrastava a mala ou fui eu, quando troquei o aparador de lugar? As marcas estiveram lá por muito tempo, mas nunca soubemos precisar, além de acusações. Dividimos igualmente o valor da pintura.
  Uma flechada aconteceu ou eu me feri sozinha? Levo a questão para a terapia um dia; hoje eu ainda mal consigo compartilhar com o motorista do aplicativo. Ele diz: - Tudo bem com a senhora? Eu digo: - Tudo bem sim. E sorrio. Não sei se eu, de fato, sorri ou se queria ter sorrido com gentileza. Ele merecia que eu sorrisse.

    Meus sapatos de salto e os chinelos de borracha dele, que eu usava muito mais, estão lado a lado, debaixo da cama, agora. Por generosidade ou esquecimento, ele não levou o par de chinelos. Dois orçamentos de transportadoras depois, três dias para embalar legados materiais, um dia para desocupação - de um espaço onde os únicos dois  moradores já estavam ausentes há meses - uma dose a mais do remédio para dormir, nossos funerais em comum e um sonho com a filha.
  - Vai para a escola pública, né? Como nós.
  - Vai ter um nome só, né? Diferente de nós.
  - Vai ter muitos livros desde pequena. Como nós gostaríamos de ter tido.
  - Vai ser sociável. Um pouco como você. E se irritar com a maioria dos ritos tradicionais, como eu.
    Dissemos. Não foi? O diálogo existiu em algum tempo, talvez. Eu me lembrei dele, quando eu chorava na chuva, embaixo da janela da lavanderia. Abandonei a minha maternidade e fui recorrer à outra.

    Ao meio-dia almoço sozinha, durante a semana;  aos domingos só almoço quando tenho fome e a parede do corredor do meu apartamento está sempre limpa, nenhuma mancha e jamais qualquer desconfiança de novo - se manchar fui eu. 
  De você não tive mais notícias, mas às vezes me sento na varanda, que é o lugar mais iluminado do apartamento e faço o exercício árduo de tentar separar os grãos das pedras. Às vezes é perturbador, noutras me sinto aliviada com o monte de pedras que consigo empilhar.

   A filha não nasceu, nós nunca mais seguramos a xícara de café à mesma altura, mas ainda temos coração e ternuras. Estranho viver em um mundo apocalíptico e ainda querer amar amanhã. Mas foi assim que passei a me sentir quando aprendi que podia escolher grãos, ainda que a boa memória não seja uma qualidade minha.

  Choro na chuva, mas busco a toalha e a xícara de chá, quando é preciso. Será que as civilizações antigas também se recuperavam assim? Escolhendo grão e acolhendo seus próprios desamparos?
  Sou a mãe de mim mesma e projeto para mim um futuro ora brilhante, ora feliz. Já fui à escola pública e compro os livros que eu sempre quis ter. Essa é a solução neste tempo. Que existam outras, que eu descubra ainda muitas outras.



2 comentários:

Seh disse...

maravilhosa você!..

Amanda Machado disse...

Obrigada, querido! Maravilha é você!