domingo, 30 de janeiro de 2022

Vou aprender a ninar, para apoiar minhas camaradas

  O sol já alcança a mesa de trabalho antes das oito da manhã, às seis já tinha me tirado da cama, tomando toda a cabeceira para si - inclemente, esperado, mas nem sempre desejado.
  A janela aberta até o seu limite, o vento lambendo o suor da minha nuca e levantando alguns papéis, o cabelo já em um rabo de cavalo; posso estar descalça o dia todo hoje - ao menos isso. Vou lavar o rosto mais uma vez, passar um batom, colocar brincos e encher a garrafa de água. Já estava na terceira ação do ritual das manhãs de segunda, quando a notificação sonora do celular avisa sobre a chegada de um e-mail. A aula é desmarcada minutos antes da hora combinada e por isso posso adiantar a leitura para um dos trabalhos finais, posso escrever nesta manhã ou posso até não fazer nada. 
 
  Logo o quarto estará mais quente e posso não fazer nada em outro cômodo do apartamento. Bebo mais um gole de água  e decido abrir o bloco de notas no computador e também o arquivo de leitura, talvez faça os dois e mais tarde ainda consiga não fazer nada. É isso, os últimos dias do semestre cuja opção do ócio ainda existe.

  Enquanto eu ainda tentava me mover com esse regalo surpresa, esse mimo extraordinário, sem data especial que o anunciasse, nas minhas mãos; embora não pesasse, era demasiado grande, uma caixa leve, embrulhada em papel celofane. Uma manhã inteira.
  Grata, porém um pouco sem saber o que fazer com ela, além de sorrir, a campainha toca. Deixo o bloco de notas e o livro abertos na mesa e vou  abrir a porta. Na soleira, a figura muito menor do que eu, com o rosto fino, pálido e de olheiras profundas me olha sem muita convicção de amparo, mas se arrisca. A voz é do tamanho dela, quase um sussurro. É minha vizinha, nos cumprimentamos ocasionalmente pelos corredores, mas quase nada sei dela; só da recente maternidade e de um conflito violento com o ex-companheiro no primeiro andar do prédio. 
  Ela se aproxima e explica que eu sou a sua terceira tentativa, pede desculpas pelo incômodo e que se eu estiver ocupada ela entende. A irmã não veio, a mãe não se sente bem para atravessar a cidade e ela não tem mais ninguém hoje. Eu acho o pedido fácil e me comovo com a sua solitude tão juvenil e já tão sobrecarregada, só volto ao quarto para calçar o chinelos e a acompanho.

  Ela me leva até o quarto, elenca algumas instruções e deixa o seu número de celular, caso eu tenha alguma dúvida.
  - Se me chamar, em dez minutos estou de volta.
  Ela pega a bolsa e enquanto me entrega a chave do apartamento parece querer desistir.
  - Vá tranquila. Ficará tudo bem.
  Eu acredito e ela parece confiar um pouco mais agora. 
  Estou em frente a um berço branco, com um móbile de Alice no país das Maravilhas, se movendo lentamente com um pouco de ar que entra pelo basculante, não me aproximo muito para não acordar o bebê. Não sei como ela é, só sei que se chama Alice, tem muito cabelo e menos de um ano. Não sei o nome da sua mãe, mas parece que tem menos de vinte anos e não vai à faculdade mais, desde antes da pandemia, já escutei seu pai furioso, gritando no portão e, depois, chorando, quando algum vizinho ameaçou chamar a polícia, já ouvi a sua avó cantarolando para a neta uma música da minha infância e me sinto estranha por estar pela primeira vez em um outro apartamento do meu prédio.

   Procurava um lugar para me sentar e, no quarto, só a poltrona, daquelas confortáveis para a mãe amamentar o seu bebê, mas não achei apropriada para mim - talvez um pouco distante do berço e baixa também, busquei uma cadeira na sala e a coloquei atrás do berço, em direção ao travesseiro da Alice, mas sem que ela pudesse me ver, se acordasse de repente. Resolvi aproveitar o tempo e adiantar alguma leitura, encontrei o arquivo e no celular mesmo comecei o primeiro parágrafo, antes da metade da segunda linha, Alice se moveu e eu fiquei em suspensão, esperando que ela chorasse, engasgasse ou somente acordasse, mas ela só se mexeu. Voltei os olhos para o texto de novo e Alice emitiu algum som, parei a leitura e, de novo, a calma se instalou. Talvez não seja apropriado mesmo manter a atenção em duas tarefas lados distintas. Essa manhã não é minha.
  Fixei os olhos no móbile. A Rainha Branca é mais bonita que a Alice, mas o Chapeleiro Maluco, é  mais bonito que as duas, a Lebre de Março parece um coelho triste e o Coelho Branco parece um rato. Uma corrente de ar entra pela porta do quarto e a Rainha Branca e a Rainha de Copas, têm seus fios entrelaçados. Ficam de frente uma para outra, mas de costas para a Alice do berço. Vou socorrê-las, deixar tudo em ordem, mas Alice me olha - não a do país das Maravilhas. 

 Vai chorar, vai estranhar, vou ter que tirá-la do berço e não sei quanto tempo mais a mãe ficará fora. Vai chorar, vai ter fome e eu vou dar a mamadeira, não sei se muito quente ou fria. Vai chorar, vou pegá-la no colo e ela vai estranhar as duas rainhas entrelaçadas e eu sem ter mãos para cessar o conflito real. 
  - Ai Alice, me ajuda!
  Ela continua me olhando e não chora. Separo as duas rainhas de pano e volto a olhar para ela. E se eu falar e ela estranhar a minha voz? E se eu ficar em silêncio e ela achar que está desamparada de atenção.
  - Oi Alice!
  Alice sorri. Está tudo sob controle e eu não sei mais quanto tempo falta para a mãe chegar. Procuro a cadeira e Alice me procura, coloco-a em frente ao rosto da menina e ela me encara. 
  - Estamos bem e assim continuará, não é, Alice? 
  Alice concorda e só me olha. Outra corrente de ar entra pelo apartamento e a porta da cozinha bate com força. Nos assustamos e Alice chora pela primeira vez na minha frente.

  Me abaixo e pego Alice. Ela é mais pesada do que eu imaginava e tem tanto cabelo quanto eu via. Estamos sós e nos conhecemos recentemente, tento me lembrar de como é ninar um bebê, já fiz isso muitas e muitas vezes, mas parece distante esse tempo. Ela não demora a se acalmar e o choro não evolui
  Está ainda mais quente no quarto, mas só de estar no meu colo não choramos; a respiração dela também me tranquiliza. Ficamos nós duas em frente ao móbile, sem palavras. Só olhares e alguns sorrisos. Alice parece gostar mais da Rainha de Copas e, por isso, eu a deixo segurar o móbile, mas ela asfixia a vilã. Deixo.
   A jovem mãe bateu à minha porta numa manhã de segunda-feira  e me pediu sessenta minutos com a filha. Ela só queria cortar o cabelo em um salão na rua debaixo. Agora o interfone toca; é a mãe de Alice, outra vez. Vamos as duas atender a porta.

  A mãe volta com uma franja nova e o corte realça a sua juventude. A filha estranha um pouco, mas depois cede ao familiar e pede colo. A mãe me pergunta sobre a cadeira, que agora eu devolvo para o lugar. Falo que achei a poltrona baixa demais e longe para que eu conseguisse ter uma boa visão da menina no berço. Mas a razão é outra, sacralizei a poltrona. Não era  meu lugar.
  Me despeço de Alice, sem conflitos, abandono o seu país em ordem e logo estarei de volta ao meu - não tão pacífico quanto o dela é agora. A dona da franja e a algoz da Rainha de Copas me levam até a porta e se despedem. A franja dela vale muito mais do que meia lauda lida ou dois parágrafos de texto escritos. Talvez não estamos tão sós, quando velamos um sono. Talvez não estivéssemos sós quando acordávamos e não enxergávamos ninguém, era só uma cadeira deslocada. A manhã não rendeu nem leitura nem escrita, mas quero aprender a ninar, para ajudar minhas camaradas.



2 comentários:

Kellen disse...

Ahhh que lindo ❣
Também já ninei uma Alice.

Amanda Machado disse...

Ahhh...amiga, obrigada!
Sim...E uma Alice tão fofa...quero niná-la também.