quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Aparecem pedras nos pães que eu como

  Combinamos às duas da tarde de segunda-feira. Das outras vezes fomos aos domingos ou sábados, mas, agora, por efeito das restrições de visitas, segunda parece ser um dia mais tranquilo. 
  Na noite anterior durmo mal, tem feito muito calor e tenho alguns contratempos no trabalho pela manhã, por isso preferia desmarcar o compromisso. Mas com ele não, com ele a minha agenda quase nunca é rasurada. Nos conhecemos há tanto tempo, que ele já espera que eu desista e eu sei que ele ficará muito contrariado se isso acontecer.  
  Penso que, na verdade, não me custa muito e que há mais de um ano não fazemos esse caminho. Penso também que, afinal, somos privilegiados em refazê-lo agora,  juntos.

  Às vezes, essa visita é como se eu saísse para levar um currículo, vou limpa, simpática, burocrática até;  noutras é uma espécie de itinerário para a minha própria existência. Tenho que ir para me libertar, tenho que ir para saber que não estamos completamente livres nunca. 
   Não é um chamamento de laço sanguíneo, pelo qual nem tenho tanto apreço assim; tampouco em respeito a nossa convivência, que antes nem se estabeleceu forte ou afetuosamente. É por algum outro motivo, menos explícito, menos palpável. Vou. Já os motivos dele eu não sei, de fato. Nunca perguntei e talvez nunca o faça. Mas desconfio que é mesmo por essa propensão a uma ética e rigorosidade de caráter. É um desses humanos surpreendentemente confiáveis. Ele vai porque nunca pensa o porquê em ir.

  Sempre sugere a necessidade de companhia, nos últimos tempos tenho sido eu a mais assídua. Mais do que alguém que o siga, ele precisa de alguém que o traduza e seja intermediário dos diálogos que sem mais outro alguém serão pouco possíveis. É um homem que, necessariamente, precisa das palavras e me leva, porque eu nem tanto.
  A mulher a quem vamos visitar tem profundas limitações na oralidade e, também, na escrita, que usa quando a fala não sai, mas que às vezes acrescenta pouco ou nada. Se ele vai só, nunca fica mais do que dez minutos. A incomunicabilidade o expulsa, a limitação do encontro o arrasa.
   Sei bem o caminho dos silêncios, respeito muito o que não entendo e raramente desisto de tentar ler a caligrafia torta e fraca dela, também roubada pelo acidente. Há, além disso, um certo incômodo nele com os discursos acalorados dela, cujos sentidos muito ampliados parecem confusos, quando a química não controla bem os seus espasmos cerebrais. Ela pode ser mais ininteligível nesses dias.
 
  Ainda na ida, me lembrei de levarmos algo, algum presente que fizesse com que a nossa presença se diluísse mais lentamente quando fôssemos embora. Uma estranha tentativa de durarmos; de irmos além. Lembramos ainda, antes de chegarmos ao caixa, que agora ela não está mais só. Lá, no mesmo lugar, há alguém a quem também conhecemos e, por isso, levamos um presente para cada uma: iguais, mesmos embrulhos. Como fazemos com crianças para não preferirem o que não podem ter. Termino os laços dos pacotes no carro, que chamamos há pouco, e vamos sem saber muito o que nos encontrará depois de uma ausência longa.
  Toco o interfone e recebemos, por ele mesmo, as instruções da visita: devemos ficar do lado de fora, com máscaras durante todo o tempo, sem contato físico e apenas nos veremos através de um vidro. Antes do enfermeiro chamá-la, ela já nos vê de longe e se aproxima, chega sorrindo, com olhos brilhantes e dentes muito à mostra. O enfermeiro abre uma parte da vidraça e ficamos mais próximos. Estabeleço o primeiro diálogo e ela aponta para a minha companhia com uma das mãos e com a outra esfrega o peito.
  - Ela diz que sentiu saudade.
  Eu traduzo. E ele quase chora. Mas logo começa a explicar a razão da sua ausência e ela ouve com atenção. 
  Com o gesto de "espera aí", ela desaparece pelo corredor e em alguns minutos volta com um rádio de pilhas quebrado. Foi ele quem deu e ela quer que o levemos para consertar. Ele explica que talvez demore a próxima visita, mas ela insiste, coloco-o na bolsa e aproveito para entregar o presente que compramos. Pergunto pela outra mulher a quem gostaríamos de também ver e ela logo sai e volta, empurrando uma cadeira de rodas.

  Agora somos quatro antigos conhecidos, a última a chegar é também a mais distante no tempo. Não se lembra de mim, do meu nome ou qualquer grau de parentesco, faz perguntas e se expressa muito bem, como antes; mas tem o seu cotidiano preso em um passado mais remoto, onde eu não estive; mas os três sim. E esse é o recurso da minha interlocução, ajudá-los a conversarem sobre o que foram. Por alguns minutos os diálogos normativos se estabelecem, mas as duas mulheres transitam noutro tempo e espaço, por longos minutos, e tentamos ir com elas. 
  A mais velha, mas a última a chegar, logo se esquece do presente que entregamos e procura alguém que o tenha perdido ali, no colo dela. Tentamos explicar, ela parece entender, mas depois se esquece e, de novo, se concentra em encontrar o dono do presente. A mais nova se cansa e ameaça a levá-la embora, eu intervenho, peço para deixá-la mais um pouco e o encontro se torna desordenado. Ela sorri e mostra um dos dentes quebrados: 
  - Aparecem pedras nos pães, às vezes.
  Eu acenei com a cabeça que entendia, mas não soube que pedras eram, por muitos dias.

  Nos despedimos e antes da partida a mais velha, com a sua mesura habitual, se desculpa:
    - Sinto muito por não tê-los recebido melhor, mas vocês sabem, na casa dos outros não podemos fazer nada. Passando aqui por perto, por favor, não se esqueçam de parar.
  Descemos a íngreme ladeira um pouco atordoados ainda, alguns risos salpicados entre melancolias familiares. Um carro para e a motorista nos oferece carona.
  - Condução aqui é difícil. Eu deixo vocês lá no Centro.
  Voltamos com um rádio quebrado, os olhos marejados no carro de uma empresa funerária. A motorista reconhece o meu acompanhante, que todo mês paga o boleto do plano de sepultamentos - a morte para ele é também um caso a ser cuidado previamente. Olho para ele que vai sorridente e falante no banco da frente. Gosto desse homem porque ele não abandona. Gosto porque ele faz sem saber. Aprendo com ele o não-saber; que é uma virtude infinita e bela.  Chegamos ao Centro , descemos do carro e andamos sob o sol de uma segunda-feira.
  - Faz o café enquanto eu tomo banho para assistir à aula, pai.
  Eu não falo e ele entende assim. Para nós a incomunicabilidade não atravessou outra geração.

  Tomo o café que ele faz e tenho cuidado com o pão que como. As pedras que ela come, talvez um dia eu também experimente. Que eu tenha dentes fortes, porque eu também não quero deixar de comer os pães. O rádio de pilhas ainda não consertaram.



2 comentários:

Márcio disse...

Lindo e tocante.

Amanda Machado disse...

Muito obrigada pela leitura, Márcio! Fico contente que tenha gostado...