domingo, 29 de maio de 2022

Na direção contrária ao espetáculo

  É uma imagem em preto e branco, numa resolução muito ruim, talvez porque tenha sido ampliada com recursos pouco profissionais. Mas ainda que alguns detalhes fiquem omitidos, o mais importante parece estar lá; cristalizado, sentenciado sem precedentes de contestação. A imagem está definitivamente encrustada num espaço-tempo que modificação alguma pode alcançar mais, está segura e é sólida. Como um templo bizantino, uma pirâmide egípcia, um totem sagrado em alguma sociedade oriental, mas sem a mesma ostentação, comparáveis somente na solidez e beleza.

  É uma foto prosaica, talvez de uma tarde ordinária de um fim de semana qualquer, há um casal, um pouco tímido, mas sorriem para a lente e parecem naturais, tanto nas expressões, como no gesto de um meio abraço. Têm posturas um pouco encurvadas, ele porque sendo mais alto parece querer se aproximar mais dela, e ela por conta de uma timidez de modelo pouco acostumada aos registros fotográficos.    
  Não são especialmente belos, parecem atores de algum filme do neorrealismo italiano, comedidos, sonhadores e discretamente felizes. Bonitos sim, de um jeito indelével, não-comercializável e imperecível.  
  São visivelmente humildes, mas na imagem parecem imensos. A perspectiva da câmera, posicionada de baixo para cima, ajuda, mas não é só isso; há no semblante do casal, uma espécie de vitória antecipada.   

   Na imagem, o sol que não se vê, mas é perceptível pela sombra que o corpo da mulher deixa no peito do homem. Talvez a sombra dos cabelos longos e volumosos dela. E ele parece apertar um pouco os olhos também, fotofobia, na velhice, e cataratas. 
  Fazem algum programa prosaico de namorados sem dinheiro. Não tem a torre Eifel, ao fundo, não passeiam de gôndola por Veneza, tampouco estão em frente ao Taj Mahal ou Muralha da China,  nenhum cartão-postal na imagem. Só eles dois, além de uma natureza pouco expressiva, alguns galhos secos, areia fina, mato alto e pedras. É a prainha, debaixo do pontilhão, embora não apareçam na foto, sei que estão lá. A areia branca, a água muito gelada e marrom e a ponte.
  O lugar era muito frequentado, popular mesmo, nesses tempos em que a foto foi feita, mas por alguma sorte ou precisão do fotógrafo, não há outro personagem instalado na cena, uma sombra sequer de outra pessoa além do casal e isso parece deixá-la ainda mais valiosa.

  Não há legenda, nenhuma narrativa escrita registrada para além da imagem. Mas não parece ser um dia especial ou que a foto tenha sido combinada previamente. As roupas são simples, o cabelo dela está solto e não parece ter algum penteado profissional e o dele, talvez, tenha uma pomada, que era habitual da sua rotina à época. As posturas são desacostumadas, o enquadramento parece amador, mas o resultado é de uma beleza comovente.
  Talvez tenham saído para um passeio, desceram até à prainha - de água doce, única possível em Minas - pela trilha perto do pontilhão e encontraram um aspirante à fotógrafo com uma máquina recém-adquirida numa bolsa de couro. Talvez fosse um dos irmãos dela, um vizinho ou um companheiro de time dele, que sugeriu a foto. Eles não se recusaram e nesse instante de imprevisibilidade o totem se ergueu. 
 
  Não recitavam poesia, não estudavam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não ouviam Milton Nascimento, não sabiam de Paulo Freire, Nise da Silveira, tampouco dos filhos que teriam, das noites que repensariam o amor, das despedidas, dos outros encontros, dos sonhos conquistados, perdidos e, silenciosamente, dos esperados. Não sabiam de fevereiro ainda, das netas, dos médicos, das curas, da fé, das marcas que nunca saem com alvejante e bicarbonato. Dos porta-retratos com uma gente que não esperavam ter para si, dos muitos ruídos que atravessam as relações, mas quase não esbarram nos afetos.
  Àquela altura, só sabiam que semanas depois talvez tivessem um primeiro retrato, que o trem hoje atrasaria e podiam ficar mais tempo na prainha ou subir e contemplá-la do pontilhão.

  Eles chamam retrato, mas talvez seja mais do que isso; ele se preocupa com o sono dela e ela com o colírio dele. Ainda dão meios abraços e sorriem muito, embora nenhuma foto possa verdadeiramente alcançar a beleza daquela outra. 
  Na imagem, um casal sorri, mas ainda não sabem o resultado da única pose, da tentativa singular de um registro que enternece dezenas de anos depois. Ambos de sapatos, pisando na areia da prainha, ambos de calças compridas com o sol impiedoso de agosto; ela sem batom, ele diz que ela está bonita assim mesmo, escolhem um lugar, na direção contrária ao espetáculo, com a ajuda do fotógrafo amador e pronto.

  Essas duas pessoas da imagem, sem planejar ou  antever, transformaram uma realidade ao  redor e criaram novas possibilidades, de afeto, de luta e de sonhos. É possível que a cópia ruim da fotografia não dure tanto tempo na parede, mas assim com um templo devastado por bombardeio ou terremoto, há uma pilastra invisível que se eterniza, uma pequena construção que dá sentido a todo o restante.
   Essa pequena revolução dos comuns acontece diariamente, em outras configurações de subversivos, em outros cenários e com afetos e afagos diversos, numa foto que quase ninguém pode ver; na direção contrária à desesperança. 
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